Benfica, esta é a crueldade do bom futebol

Houve um bom, e às vezes grande, jogo de futebol em Amesterdão. A bola trocou-se rápido, pela relva, com muitas tabelas e jogadas bonitas ao primeiro toque, mas quase todas vindas do mesmo lado. O Ajax teve mais posse enquanto o Benfica até conseguiu ser perigoso a rematar à baliza, no contra-ataque e nas transições rápidas, mas sempre foi mais encolhido, resguardado e desligado com a bola. E, depois de algumas paradas salvadoras de Vlachodimos,...

O mais fabuloso da genialidade pensadora de Johan Crujff era que, sempre que lhe pediam para opinar, ele simplificava o complexo. Fazia-nos pensar, ingenuamente, que a receita para o elixir do futebol estava escondida, algures, nas singelas coisas por ele apregoadas, fielmente. Como se fosse uma questão de reconhecer o óbvio do que dizia, executando-o, quando o que o holandês pensava era tudo menos isso. O fácil para Crujff, complicado era para o resto do mundo.

“Se queres ir para o ataque, tens que dominar o jogo, e só podes dominar o jogo se tiveres a bola. E, se queres atacar, precisas de gente que tenha uma técnica fina.”

O Ajax, tão fiel à maneira de jogar futebol que Crujff jogou, fez jogar e treinou, mais tarde, para que jogassem por ele, que desde os anos 80 que tem por regra, e identidade, o seguinte: joga-se de forma apoiada, desde trás, com a bola na relva e tendo-a como um bem caro, que não se deve desbaratar com chutões, mas valorizar com os jogadores sempre bem juntos e sem posições estáticas.

É como jogam Ziyech, De Ligt, Dolberg, Blind, Van de Beek ou Frenkie de Jong, rapazes crescidos no clube, com mais ou menos anos de formação, e germinados para envolverem o Benfica na teia de muitos tocas-e-vais, fomentado por um guarda-redes com pés semelhantes aos dos centrais, que abrem para construir coisas desde a área, deixam um médio recuar, forçam o espaço chamando adversários, fixando-os, e aproximando a “gente com técnica fina” na frente.

Pode ser arriscado, ousado e deixar a equipa muito a jeito para bolas que se percam em próprio campo, porque o é.

Tanto que o Benfica, especialmente cauteloso para impedir o Ajax de sair apoiado, de trás, pela direita, e de encontrar Ziyech ao terceiro ou quarto passe, encaminha os holandeses para essa via, que armadilha com pressão. É assim que recupera duas bolas nos primeiros cinco minutos e Rafa arranca, em diagonais que acabam em remates - dele, à entrada da área, e de Seferovic, depois de Salvio não o querer fazer e cruzar a bola para o pé direito, o com mais miopia do suíço.

Quase meia hora teria que passar até Pizzi picar uma bola, a meio do campo, para a cabeça do avançado tocar, para trás, e isolar o sónico Rafa, explosivo a arrancar na receção e a rematar, na área. A bola rasteira não acertou na baliza. E nada mais se veria, até ao intervalo, além de uma invenção forçada por Seferovic, uma bomba individual a 35 metros da baliza.

O que se viu foram quase 300 passes feitos pelo Ajax, sem o bocejo aborrecido de uma bola a ser banalizada para o lado. Viu-se uma equipa, em Amesterdão, a existir à base de tabelas verticais, usando os centrais para atrair a pressão e libertar jogadores entre as linhas. A refugiar-se na técnica e no talento incrivelmente guardados no corpo de Ziyech, gerador de tudo o que se tornava perigoso, ou nas conduções de bola de Frenkie de Jong, em quem parecem ter encarnado muitos ideais rezados por Crujff.

O holandês dava uma saída limpa e rasteira à bola e o marroquino, vendo o Benfica a bloquear linhas rumo a ele, preocupou-se mais em pedir a bola à entrada da área, ao centro, onde obrigaria corpos a virarem-se caso a recebesse, entre as linhas. Rematou-a em formato de bomba para Vlachodimos a parar, depois de o greco-alemão de luvas postas tapar a bola que Dolberg disparou, sozinho, isolado por Ziyech. E quando ela sobrevoou o guarda-redes, após um canto curto e só cruzado ao terceiro passe, Conti cortou-a em cima da linha.

Mesmo sem golos, a primeira parte foi boa e farta em futebol, sem chutões não calculados para a frente, repleto de jogadas apoiadas, com duas equipas a jogarem com o espaço e a bola em vez da incerteza do improviso individual.

Quando recuperava a bola em campo próprio, o instinto dos jogadores do Benfica era procurar, diretamente, Seferovic, para que o corpo, as costas e a proteção à bola do suíço deixassem os restantes ganhar metros no campo. Foi das partidas em que a equipa mais se ligou ao avançado (quando ele não era um brasileiro grisalho). Do seu esperançoso pé esquerdo apareceu o remate que obrigou Onana a ir à relva e a bola cruzada, rasteira, para a pequena área, em que Salvio não acertou.

Quando a hora de jogo chegou, os encarnados poucas mais vezes fizeram de Seferovic um refúgio. Porque, jogando sempre da mesma forma, o Ajax continuava a pressionar muito assim que perdia a bola e, atacando com os jogadores juntos, próximos os tinha quando pressionava para a recuperar.

Os minutos foram destapando as receções, os passes, os dribles e tudo o mais cachemira no toque de Ziyech, um marroquino de corpo esparguete a quem era proeza tirar a bola. Ele aproximou-se de Tadic, o outro canhoto cheio de técnica. Deixaram os 50 anteriores metros de campo para Frenkie de Jong, esperavam pela bola à frente e desentrelaçarem jogadas que os próprios complicavam, perto área do Benfica, a fim de atraírem atenções e libertarem outro alguém do Ajax, para que pudesse rematar à baliza.

As bolas que lá acertaram coincidiram com as luvas de Vlachodimos, que se agigantou no reflexo que desviou o míssil, disparado na passada por Van de Beek. Agarrou outra, vinda da potência de Ziyech, e desviou outra, batida por De Jong. O Benfica era aguentado por quem guardava a baliza e por Conti e Jardel, que frustravam muitas tentativas de tabelas, a querem entrar na área à força. Mas os jogadores do Ajax não se frustraram.

Não se desviaram da maneira de jogar, nunca bateram a bola lá na frente, para a área, à força. Seguraram o jogo na relva e nos muitos pés por metro quadrado de relva - e isso, com o tempo, cansou e danificou os encarnados, até à exaustão. E Rui Vitória, a ver a equipa a esticar-se enquanto Seferovic deu tempo a Rafa para se aproximar, apenas decidiu quando todos lemos o depósito vazio nos lábios de Pizzi: “Não consigo mais”. Gabriel, a primeira substituição, apareceu aos 79 minutos.

E um Benfica que sempre tentou sair a jogar pela relva, mesmo que mais a longa do que a curta distância, que se associou a Seferovic, teve bons períodos a trocar passes com Gedson a descomplicar, quando se juntou aos laterais e extremos, acabava o jogo de rastos, a defender-se na perspetiva de um 0-0 que parecia casmurro. Mas, aos 90’+2, um corte falhado por Conti deixou uma jogada continuar até a bola chegar a Mazraoui. O remate do lateral direito, o provável jogador menos talentoso entre os holandeses, desviou em Grimaldo e fugiu a Vlachodimos.

Assim que a bola entrou, a falta de tempo restante vaticinou o destino do Benfica - ia perder o melhor jogo que fizera nesta Liga dos Campeões, contra o adversário que melhor futebol joga no grupo. O que poderá ser um sinal, que explicará, em parte, como os encarnados só marcaram golos em dois dos últimos dez encontros nesta competição. Ou como esta derrota os deixa com quatro pontos e o terceiro lugar de um grupo onde há duas equipas (Bayern e Ajax) com sete pontos.


FONTE: TribunaExpresso