O que é que o Sr. Comendador Joe Berardo tem a ver com os árbitros Hugo Miguel e Luís Godinho? Duarte Gomes explica
O ex-árbitro Duarte Gomes escreve sobre o "erro importante" que Hugo Miguel e Luís Godinho cometeram no Rio Ave-Benfica, mas aproveita para comparar com o caso Joe Berardo e, também, com o final da Premier League.
O árbitro Hugo Miguel e o videoárbitro Luís Godinho cometeram erro importante no jogo de futebol que dirigiram no passado fim de semana.
A importância desportiva dessa má opção técnica originou um tumulto nacional de dimensões incalculáveis.
Um tumulto que paralisou o país e que monopolizou todas as conversas. As do café, do talho e do dentista. Aqui, ali e acolá.
Foi (continua a ser) a bomba mediática da semana.
Quarenta e oito horas antes, o Sr. Comendador Joe Berardo protagonizou um dos momentos mais "especiais" da história recente da nossa nação.
Mas a "não dívida" de mil milhões de euros ao povo português - a mim, a si e a todos nós - não mereceu um décimo da atenção/reação que o erro momentâneo daqueles dois árbitros mereceu.
Não é exagero nem corporativismo. É verdade e quem for pragmático na análise, concordará que sim.
Quer isto dizer que a nossa revolta, triste e envergonhada, ao discurso alegre e sorridente do dono da garagem foi uma ténia anã quando comparada com a manada de elefantes que esmagou, trucidou e assassinou não só os árbitros, como também os chefes de família que foram nomeados para aquele jogo.
Estes extremos, tão díspares e antagónicos, dizem muito sobre nós. Dizem tudo sobre todos nós.
Dizem, por exemplo, que a nossa formação de base, educação e cultura estão na rua da amargura. Ou nunca sairam dela, porque só isso justifica que tenhamos prioridades tão adulteradas.
Não vos faz confusão?
Então uma conduta grave, potencialmente criminosa, continuada e com gravíssimos prejuizos diretos e indiretos para todos nós é irrelevante quando comparada com a falha cometida num jogo de futebol?
Num jogo de futebol? Valha-me Deus.
Não se pense (e eu sei que já há gente a ferver, por aí) que esta comparação pretende desvalorizar a atuação infeliz que a equipa de arbitragem teve em Vila do Conde. Nada disso.
Sou comentador desportivo e, no âmbito dessa função, em vários momentos deixei clara a minha opinião técnica sobre o lance. Ponto final, parágrafo.
Em termos estritamente desportivos, a incompetência momentânea que resultou naquela má avaliação (relevante no resultado final) terá consequências para os dois. Seguramente.
Mas a maior dessas consequências - e que se faz sentir desde o apito final - é profundamente imerecida, porque extravaza o que profissional fez para afetar, muito perigosamente, quem o homem é.
Os árbitros Hugo Miguel e Luís Godinho falharam (Deus sabe as vezes que eu cometi erros piores, em campo), mas o Hugo e o Luís continuam a ser pessoas. Pessoas tão iguais a mim ou a si. Pessoas que têm pais, filhos, irmãos, vizinhos e amigos. Tal como eu e você. Pessoas que trabalham há uma vida inteira e que, garantidamente, esfolam-se para fazer sempre o melhor que podem e sabem. Tal como este escriba e o caro leitor.
O problema aqui, está claro de ver, é o de sempre: a nossa incapacidade em balizar as coisas. Em separar o trigo do joio.
A treta da latinitidade - que alguns usam como argumento para justificar o facto de serem umas verdadeiras bestas - nunca permite que se diferencie, como se devia, a crítica técnica do assassinato de caráter.
O ataque à competência e qualidade técnica, totalmente legítimo... da tentativa estratégica e criminosa de insinuar premeditação e intencionalidade. De atacar a integridade de gente muito, muito boa.
A equipa de arbitragem que esteve no Rio Ave/Benfica errou, mas num país a sério, os homens que tomaram aquela decisão jamais podiam sofrer consequências pessoais dessa falha.
Se o que agora vos digo choca ou revolta, é porque, na minha opinião, estão do lado errado da barricada. A mim, o que choca mesmo é permitirmos que os Berardos desta vida (e mais meia dúzia de artistas) nos façam colonoscopias a frio sem que nada se passe, para depois chacinarmos o homem que, enquanto árbitro, falhou.
Desculpem, ando nisto há muito tempo mas continuo a não perceber, a não gostar e a não me conformar.
Quando se fala recorrentemente no exemplo do futebol inglês - tanto que, às vezes, até chateia - fazêmo-lo por uma razão muito simples: porque, intimamente revêmo-nos nele.
É a nossa referência, a referência daqueles que admiram e gostam do que é bola a sério. Porque o que se faz por lá é a forma certa de se estar e viver o jogo.
O futebol da Premier League tem muitos, mas mesmo muito mais adeptos que o nosso. Está disseminado por todo o planeta e, perto deles, somos muito pequeninos. O dinheiro que movimenta é também muito, mas mesmo muito superior ao do nosso. Não há sequer zeros à direita que o possam comparar. Mas quando o campeonato - lá como cá, disputado até à última jornada - terminou, quem venceu deu os parabéns ao adversário e quem foi vencido felicitou, de imediato, o campeão. Com sinceridade. De forma genuína. Com elevação.
O exemplo veio de cima e foi logo seguido por adeptos, em várias manifestações públicas de fairplay e puro desportivismo. Não houve espaço para se falar de erros de arbitragem e de verdades desportivas desvirtuadas porque, por lá, o nível do discurso é outro. É tudo, enfim... diferente.
Alguém acha mesmo que será assim por cá? Estão eles mal? Ou nós?
Não é, de facto, para quem quer. Quando penso ao contrário, na forma como o futebol inglês olhará para o nosso, penso que dirão o que nós dizemos quando assistimos, na televisão, a algumas imagens tristes de países menos favorecidos: "Que sortudos que somos em estar aqui".
Escrever isto não custa. O que custa é saber que isto dificilmente mudará.
FONTE: TribunaExpresso