"Fazemos o mesmo que os homens e não temos um terço do que eles têm. É um absurdo e revolta-me"

Dolores Silva foi campeã no Atlético Madrid há uma semana e este sábado joga a final da Copa da Rainha contra a Real Sociedad. Em entrevista à Tribuna Expresso, a n.º14 da seleção e dos colchoneros fala sobre o seu futebol, Paulo Futre e daquele jogo especial com quase 61 mil pessoas no Wanda Metropolitano.

Tens 27 anos e foi o sexto campeonato que ganhaste. Parece fácil…

Aaaahm, bem… Fácil, não. Acho que foi fruto de muito trabalho, de muitas horas dedicadas ao que mais gosto de fazer. Felizmente tenho oportunidade de o fazer de forma profissional. Estou muito contente por ter alcançado mais um título, o primeiro fora de Portugal. Deixa-me muito contente. Todo o esforço, sacrifício, ao longo destes anos, fora foi recompensado.

O Futre é um rei no Atlético Madrid e não ganhou nenhum. Chegas e, no primeiro ano, ganhas logo um campeonato. Queres aproveitar para lhe deixar uma palavrinha?

Ele é muito acarinhado aqui e toda a gente gosta dele. Como disseste, é o rei. Dá-me muito orgulho conseguir, enquanto portuguesa, representar um clube em que um português é uma lenda. Ganhar o título é muito especial.

Que ligas deram mais trabalho, as do 1.º Dezembro ou este?

São coisas totalmente diferentes. Como é óbvio, os tempos não se podem comparar. Na altura, a competitividade em Portugal não era como este a nível internacional. É a realidade. Sobretudo há uns anos, em que pude partilhar balneário com grandes jogadoras, o 1.º Dezembro era a equipa que se destacava mais. São comparações difíceis, mas claro que nem tudo foi fácil. Também tivemos de trabalhar muito para conquistar o que conquistámos. Passados todos estes anos, acaba por ter um sabor especial por ser a primeira vez fora do meu país. Ambicionava muito um título a nível internacional.

Ganharam 28 jogos em 30. As duas derrotas aconteceram contra o Barcelona, que acabou em segundo. Elas são melhores do que vocês?

Não. Se tivessem sido melhores, tinham sido campeãs. Eu acho que a nossa equipa está de parabéns, porque, acima de tudo, a nossa preocupação foi jogo a jogo. Chegámos ao final e conseguimos bater uma série de recordes, ao nível de pontos e golos marcados. O Barcelona é uma grande equipa, é o adversário direto do Atlético, mas a chave do nosso sucesso foi encarar cada jogo como se fosse uma final e tentar ganhar sempre os três pontos. E, felizmente, fomos felizes. Quando jogámos com o Barcelona, não aconteceu, mas eliminámos o Barcelona das meias-finais da Copa. São momentos. É de realçar a continuidade na liga.

Essa coisa do jogo a jogo é muito típica do Atlético Madrid, não é? Pelo menos desde que entrou Diego Simeone… Sentes que é como dizem, um clube diferente de um Real Madrid, dos trabalhadores?

É a mensagem que nos é transmitida. É um clube que valoriza imenso o trabalho, o esforço e a dedicação. Isso é que acabou por ser fundamental para nós, porque cada uma de nós esteve sempre ciente do que teríamos de lutar e trabalhar, sempre jogo a jogo, nunca pensando à frente, no que poderia vir. Em cada semana, pensar e trabalhar o jogo consoante o adversário que tínhamos, com a maior humildade. Acima de tudo, a humildade é uma característica chave, que acaba por nos levar ao sucesso. Sim, é o Atlético Madrid, já era bicampeão, mas manter humildade e pensar jogo a jogo foi muito importante.

Houve algum jogo que te deu um grande prazer?

Sem dúvida, o mais especial desta época foi, claro, a primeira vez que joguei oficialmente com a camisola do Atlético. Foi um momento marcante, contra o Manchester City, na Liga dos Campeões, em nossa casa, a 3 de setembro (risos). Esse foi, sem dúvida, especial. Jogar a Liga dos Campeões era uma ambição que eu tinha. E outro, que nunca mais me vou esquecer, foi contra o Barcelona, em nossa casa, no Wanda, quando estiveram as quase 61 mil pessoas a assistir. Deu-me bastante gozo jogar, independentemente de ter entrado na segunda parte e termos perdido o jogo. O momento que tive lá dentro desfrutei ao máximo, deu-me imenso prazer aquele ambiente.

Usas o 14 na seleção e no Atlético. É algum encanto por Crujff ou mero acaso?

Ah, não. É um número que, por acaso, sempre tive a sorte de conseguir. Lembro-me de jogar com os miúdos no Real de Massamá, comecei com esse número. E, desde aí, criei uma afeição pelo 14. Em cada clube em que estou, ou na seleção, sempre tive a sorte de não estar ocupado. A primeira vez que fui à seleção consegui ficar logo com ele. Na Alemanha, nos dois clubes também fui, no 1.º Dezembro também, no Braga também. Agora, no Atlético, tive a sorte de a jogadora que tinha o 14 ir embora… Foi mero acaso. É um número que gosto muito.

Ainda arrumas o saco sempre da mesma maneira como superstição, como disseste numa entrevista à Tribuna Expresso em 2017?

Depende, porque o saco já não é o mesmo (risos). Tento sempre ter as coisas organizadas como gosto, sempre foi uma superstição. Nunca vou perder essa parte, sou um pouco supersticiosa.

Ganhaste algum ritual em Madrid?

Não, tento ter os mesmos que venho tendo. Acho que já falei nisto, tenho um…

Crucifixo da avó.

Exatamente. Esse está sempre comigo, é como se fosse uma proteção. Sei que ela está a proteger-me, por isso tenho o cuidado de o ter na mala sempre.

Há pouco falaste da eliminatória com o Manchester City. Deixa-me falar do que não correu assim tão bem na Liga dos Campeões, com o Wolfsburgo da Cláudia Neto: perderam 4-0 e 6-0. O que aconteceu?

Acabou por ser uma desilusão. Sabíamos que à partida eram jogos complicados. Talvez a abordagem ao jogo não tenha sido a melhor e, claro, jogando com equipas com grande potencial, e sobretudo físico, faz a diferença. Independentemente disso, a minha equipa tem muita qualidade e poderia ter feito muito melhor, ou, pelo menos, não perder da forma como perdeu. Acho que, ao nível da qualidade de jogo, a nossa equipa não é inferior. São pormenores e detalhes. Estas equipas têm mais experiência, maior preparação e poderio físico, e, claro, enorme qualidade. Neste tipo de competição não perdoam, mas não podemos esquecer que também eliminámos o Manchester City, que tem uma grande equipa. Da próxima vez, vamos tentar melhorar o rendimento nesse tipo de jogo.

Nos estágios da seleção, a Cláudia Neto deixava-te esquecer isso ou brincava contigo?

Não, temos muito respeito pelo trabalho uma da outra. Ela sempre disse que a nossa equipa tinha bastante potencial e que nunca pensou que os resultados fossem ocorrer daquela forma. Tinham bastante respeito pela nossa equipa e pelo que andávamos a fazer. Desejei-lhe sorte e reconheci, claro, que contra elas, pela qualidade que têm, paga-se caro neste tipo de competições. Respeitamos muito o trabalho uma da outra.

Achas que o futebol feminino é uma revolução em marcha imparável?

Eu espero que sim. Tem-se vindo a mostrar cada vez mais interesse pela mulher no futebol, pelo futebol feminino. Tem aparecido, cada vez mais, gente a querer falar de nós e a querer investir em nós, para dar melhores condições de trabalho. É muito bom, é sinal que valorizam o que fazemos dentro de campo. Oxalá isso continue. O que mais desejo é que aconteça em todos os países, que o futebol feminino cresça de uma forma geral. Não tenho dúvidas nenhumas que o Mundial vai ser um momento chave, vai fazer com que o mundo do futebol feminino seja mais visto. Só tenho pena de não poder jogá-lo, mas, pronto, faz parte...

O que é que não te ensinaram na formação que fez falta?

É mais pelas condições que a formação agora tem. O facto de poderem passar pelos diferentes escalões e terem as condições que têm é muito importante, para poderem desfrutar e trabalhar ao máximo desde muito novas. Foi o que me faltou. Antigamente, via-se muitas jogadores de 15 anos já nas seniores. E haver as camadas jovens nas seleções é algo muito importante. É mais pelas condições. É o que vai dar mais valor e fazer com que a jogadora vá mais preparada quando chegar a sénior.

Segues as lutas pela profissionalização do futebol feminino, como aconteceu há pouco tempo na Argentina?

Sim, vou estando atenta a algumas dessas situações. É importante que lutemos pelos nossos direitos, há que saber é o momento e a forma como se faz. Às vezes, ao querer tudo, podemos perder tudo. Devem ser coisas bem pensadas. Mas admiro muito quem luta connosco, para proporcionar melhores condições para a mulher no futebol. Ao fim e ao cabo, acabamos por fazer o mesmo que os homens fazem e nós, muitas vezes, nem um terço do que eles têm direito temos, e nem falo de remuneração, porque é incomparável… É uma realidade, infelizmente. Para mim, chega a ser um absurdo o que eles ganham para aquilo que eles fazem. Eu digo isto porque revolta. Em comparação com o que fazemos, é uma vergonha. Mas é assim. Passo a passo, as coisas têm vindo a melhorar. Oxalá que haja mais reconhecimento, é o mais importante.

Porque é que a maioria dos treinadores no futebol feminino é homem?

Boa pergunta. Não sei. Eu já tive mulheres e homens.

No vosso campeonato, julgo que só há três treinadoras…

Não sei. Tem a ver com as escolhas dos clubes, dos momentos. É por aí. Se calhar há clubes que preferem que sejam homens a treinar mulheres por não gostarem de conflitos entre mulheres. Não sei. Parte dos clubes.

Chegaste a tirar o nível 2 dos cursos de treinador?

Não, nem sequer sei se vou querer ser treinadora algum dia.

Ia perguntar que tipo de treinadora serias…

Como principal, não acredito. Se for adjunta, talvez. Como principal, no futebol feminino, acho que não tenho… não tenho… paciência (risos).

Explica lá isso. Não terias paciência para liderar?

Não é pelo liderar. Ser treinadora ou capitã é completamente diferente. Agora, acho que há coisas que vão um pouco contra a minha personalidade. Às vezes, nós, mulheres, somos mesquinhas e picuinhas, acho que é mais por aí. Acho que não tenho perfil para aturar mulheres depois de jogar futebol (risos).

Na tal entrevista à Tribuna Expresso, falaste no lado mental, na vantagem de teres alguém para te acompanhar. Como é ser futebolista profissional?

Não é fácil, não é fácil. A parte mental é, sem dúvida, a chave para o teu rendimento e sucesso, embora muita gente possa até ter vergonha para falar. A parte mental é o principal. Se não estás bem a nível psicológico, o teu rendimento pode ser influenciado. Quando és profissional, longe de casa, do teu conforto, acho que é uma vantagem. Gosto de fazer esse trabalho. Depende muito da jogadora, para umas pode ser mais fácil trabalhar sem ajuda. É importante, aliás muitos clubes já o fazem. Nós temos aqui. De vez em quando, é importante perceber como está a nossa cabeça.

Porque é que jogas futebol?

É a minha paixão desde que me lembro de existir. Lembro-me sempre de andar com uma bola, foi também o meu refúgio, onde pude sempre libertar outras coisas. Acabou por ser fundamental no meu crescimento e a nível pessoal. Como pessoa, foi determinante. Sem futebol, teria sido mais complicado. Por isso, é a minha paixão, refúgio, é a minha vida. Hoje em dia, poder fazer aquilo que mais gosto a nível profissional é um grande sonho, não é?, e dá-me bastante prazer diariamente. Trabalhar a fazer aquilo que mais gosto… É de valorizar e todos os dias agradeço muito por ter esta oportunidade.

Falavas há pouco que ajudou a formar-te como pessoa. O que ensina o futebol?

A mim transmitiu-me sempre muitos valores. O estar com outras pessoas, trabalhar em equipa, o poder partilhar as minhas alegrias e tristezas com outras pessoas. Conhecer diferentes culturas, aprender novas línguas, novas maneiras de pensar, tive essa sorte no estrangeiro. Tudo junto, com o acumular dos anos, dá-te experiência, valores, aprendizagens. Em todos os sítios em que estive, tentei retirar o melhor de cada pessoa com quem me cruzei. Sem dúvida, tornou-me mais forte.

Na seleção jogas a 6…

Ou a oito.

No Atlético é igual?

Sim, a 8.

Já jogaste a lateral, extremo… é a médio que desfrutas mais do jogo?

(Risos) É diferente, são posições diferentes. A minha posição natural é médio, é onde me sinto mais confortável. Mas, independentemente disso, eu gosto de jogar, seja a defesa direito, à frente, atrás, para mim o que importa é jogar. Em todas as posições que vou passando tento desfrutar ao máximo e dar o melhor. Tenho boa capacidade para me adaptar.

Que tipo de médio és?

Gosto de recuperar [bolas] e fazer jogar. Gosto de defender e atacar. Gosto de correr (risos). Gosto de ocupar da melhor forma possível o meio. Aqui, jogando a 8, dá-me mais liberdade para atacar.

Qual era a maior coisa que podias alcançar no futebol? Um sonho de menina…

O meu maior sonho é voltar a representar Portugal numa fase final, seja num Europeu ou Mundial. Os dois seria perfeito (risos). Foi um momento muito marcante na minha carreira [jogar um Europeu]. E tentar ganhar os títulos em que a minha equipa está inserida.

E a primeira lembrança de futebol?

Com o meu pai, ia com ele ao futebol. Acompanhava muito os homens. O que me marcou muito foi o Euro-2004, em Portugal. Lembro-me que vibrei imenso com aquilo, fui com o meu pai e família festejar, a buzinar no carro. Íamos lá dar uma volta nas ruas. Adorei, adorei.

Tinhas algum jogador preferido?

Eu gostava muito do Deco, Figo, Cristiano… Depois, joguei com jogadoras que, na altura, também foram referências para mim.

Por exemplo?

A Carla Cristina, guarda-redes que chegou a ser capitã da seleção, a Sónia Matias, a Edite [Fernandes], Carla Couto, Sílvia Brunheira... Consegui aprender muito com elas, tenho muitas recordações.

Este sábado jogam a final da Copa da Rainha contra a Real Sociedad. Vem aí dobradinha?

(Risos) Oxalá que sim! É um jogo especial, é uma final. O nosso objetivo é fazer a dobradinha, temos trabalhado para isso. Vamos tentar fazer o que temos feito até agora: trabalhar muito para ganhar. Seria espetacular.

E também festejam na Fonte de Neptuno?

No ano passado acho que sim. Calhou muito bem, porque elas foram campeãs e os homens ganharam a Liga Europa, então sei que festejaram lá. Este ano não sei. Gostava de viver essa experiência, festejar junto dos nossos adeptos seria bonito para recordar.


FONTE: TribunaExpresso