Moise Kean: a cor do futebol
Este é o prodígio da Juventus, produto de uma nova era que contrasta com a Itália dos costumes e a tradicional Serie A. Aos 19 anos e com um agente talentoso, o avançado que dá luta ao racismo promete lançar-se para uma carreira diferente. “Isto é só o início”.
Na Via Filadelfia, 36, ainda mora um pedaço da carcaça do velhinho Stadio Filadelfia, a última morada dos deuses da terra: il Grande Torino. Nos anos 40, os granata eram o céu. O nevoeiro e um altímetro insolente do Fiat G-212, depois de uma viagem a Lisboa, mudaram o fado do calcio e, sendo impossível mirrar-lhe a alma, roubaram ao Toro a possibilidade de desfrutar de um museu recheado.
Se o futebol destes tempos fosse o futebol de outros tempos, mais paciente e com o sentimento de pertença a arfar, talvez Moise Kean ainda lá andasse a treinar na Via Filadelfia, inspirado por Valentino Mazzola e companhia, e a jogar pelo Toro. As cavalgadas e a ousadia valeram-lhe, aos 10 anos, a mudança para o gigante da cidade. Os dois relvados estão separados por dez quilómetros de distância e um universo de oportunidades.
Kean, descendente de costa-marfinenses, é o fenómeno mais cintilante do futebol italiano. Não só pelo que faz em campo, em tenra idade, mas também pela luta que parece disposto a dar ao racismo, um tema que nunca acaba em Itália. Há sensivelmente uma semana, no campo do Cagliari, o jovem avançado italiano fez o 2-0 e celebrou o golo congelando à frente dos adeptos da casa. “A melhor maneira de responder ao racismo”, escreveria depois no Instagram.
Lilian Thuram, Raheem Sterling, Mario Balotelli e Paul Pogba vieram a público escudar o miúdo, que começa a sentir na pele a cor da pele. Já lhe perguntaram, mais do que uma vez, se se sentia italiano. “Não me sinto italiano, eu sou italiano”, responde. Un italiano vero, como cantava Cotugno, apenas com uma tez diferente. E um contexto complicado.
Números, dados, estatísticas
Moise Kean marca um golo a cada 47 minutos na Serie A – são cinco em apenas 235 minutos – e é o primeiro jogador nascido depois do ano 2000 a alinhar no campeonato italiano: aconteceu a 19 de novembro de 2016, tinha ele 16 anos, num Juventus - Pescara. Ainda assim, na época passada, e porque as jóias só brilham jogando, foi emprestado pela “Vecchia” ao Verona. Com apenas 18 anos, marcou quatro golos em 12 jogos como titular, e outros sete como suplente utilizado; esta temporada voltou de vez a Turim, à Juventus e ao Allianz Stadium, que fica na Corso Gaetano Scirea, rua com nome de lenda da Juve.
Na Liga dos Campeões ainda não celebrou uma vez, mas também ainda só esteve em campo 22 minutos, contra o Atlético Madrid; e Keane só não é o jogador mais jovem de sempre a atuar na Champions porque, em 1994, um tal de Celestine Babayaro se estreou no torneio pelo Anderlecht, com 16 anos e 87 dias.
Paralelamente, desde moço que Kean é um nome habitual nas convocatórias das seleções jovens italianas, passando por todos os escalões. Numa dessas aventuras internacionais, na final do Campeonato da Europa de sub-19, na Finlândia, defrontou Portugal: saltou do banco ao intervalo, marcou dois golos a João Virgínia, mas os rapazes de Hélio Sousa seriam mais felizes, com golos de João Filipe (2), Trincão e Pedro Correia (4-3). Mas, na gora, na squadra azzurra da elite, é um dos rostos da revolução de Roberto Mancini, que entregou a ‘10’ a Bernardeschi e arrancou com duas vitórias contra Liechhtenstein e Finlândia. O avançado da Juventus marcou nos dois jogos e transformou-se no segundo jogador mais jovem de sempre a marcar por Itália. O recorde ainda pertence a Bruno Nicolé, que tinha 18 anos em 58.
“É um predestinado”, disse Mancini.
Mas até os predestinados têm os seus momentos.
Pais e ídolos
Moise Kean, de 19 anos, nasceu em Vercelli, Piamonte, uma localidade a meio caminho entre Turim e Milão e desde cedo mostrou que era feito de outra cepa. Tinha como ídolos Balotelli e Pogba; costuma imitar os penteados deste último e, curiosamente, tem o mesmo empresário de ambos, Mino Raiola, o tal que gere a carreira de Zlatan Ibrahimovic desde sempre, pelo que é provável que, no futuro, algo de profundamente diferente lhe venha a acontecer na carreira. Uma coisa é certa: quanto mais tempo passa, mais pesados ficam os honorários de Moise.
Mas as coisas nem sempre foram assim tão certas, principalmente quando subiu à equipa principal de Turim, aos 16 anos, beneficiando das lesões de Paolo Dybala e Gonzalo Higuaín. “Isto é só o início, eu aponto sempre para cima”, avisava na altura, destemido.
A fama trouxe discórdia e a discórdia começou em casa, conta este artigo do “El País”. A mãe gostava do plano inicial de Mino Raiola, o agente do futebolista: uma primeira etapa no Zwolle, da Holanda, para depois saltar para o Manchester City, onde andam Guardiola e os seus. Só que o pai, separado da mãe e a viver na Costa do Marfim, aproximou-se da Juve e do contrato de três anos oferecido por Giuseppe Marotta, o diretor desportivo do clube.
Na altura em que assinou o contrato que está vigente, garante o pai de Kean, foram-lhe prometidos dois tratores para trabalhar as terras da sua terra na Costa do Marfim. “A Juventus já não me dá bilhetes para os jogos e também não me deu os dois tratores que prometeu”, denunciou Biorou Kean em entrevista à Rai 1 há dias. O jogador deu-lhe troco, numa publicação no Instagram. “Tratores? Não sei do que estás a falar. Se sou o homem que sou hoje, agradeço única e exclusivamente à minha mãe. Com isto, penso que está tudo dito."
Por escrever estão as próximas páginas e a primeira é para ler esta quarta-feira, com o regresso da Liga dos Campeões à vida da Juve (20h), uma espécie de obsessão que arde pela reconquista da orelhuda. Não acontece desde aquela noite de 96: o rival, na altura, foi o Ajax, o mesmo adversário desta quarta-feira. Desta vez, não há Frank de Boer, Litmanen, Davids e Kluivert, mas sim Frenkie de Jong, Ziyech, Tadic e Matthijs de Ligt. Os holandeses eliminaram os tricampeões em título.
Cristiano Ronaldo está de volta aos convocados, o que pode significar o apagamento de Moise Kean, que leva cinco golos nos últimos cinco jogos: Finlândia, Liechtenstein, Cagliari, Empoli e Milan, sendo que nos dois últimos garantiu os três pontos para a equipa de Massimiliano Allegri. Mas há histórias inevitáveis e a de Kean, à boleia dos magos da Via Filadelfia, parece ser uma delas.
“Isto é só o início”, lembram-se?
FONTE: TribunaExpresso