O fogo tirou-lhes tudo, mas levantaram-se das cinzas e fizeram história
CAMINHOS DE PORTUGAL é uma rubrica do Maisfutebol que visita passado e presente de clubes dos escalões não profissionais. Tantas vezes na sombra, este futebol em estado puro merecerá cada vez mais a nossa atenção.
GRUPO DESPORTIVO PAMPILHOSENSE: AF COIMBRA
15 de outubro de 2017. Depois de um início de campeonato promissor, com duas vitórias e um empate, o Grupo Desportivo Pampilhosense desloca-se ao terreno do Oliveira do Hospital. O resultado? Derrota por 1-0. Mas o pior ainda estava para vir. O fogo estava a chegar.
Com direção da Sertã, as chamas invadiram Pampilhosa da Serra ao final da tarde e destruíram quase tudo o que encontraram pelo caminho: 30 mil hectares ardidos e dezenas e dezenas de infraestruturas arruinadas, num prejuízo material e, acima de tudo, humano incalculável.
Ao Pampilhosense, o fogo destruiu-lhe a «casa». As chamas chegaram ao Estádio Municipal e danificaram gravemente as infraestruturas que acolhem os atletas do clube, que estiveram longe do seu «cantinho» durante mais de um ano. Num gesto de grande solidariedade, a Federação Portuguesa de Futebol ofereceu gentilmente um relvado novo ao conjunto do distrito de Coimbra, mas mesmo com a casa às costas durante largos meses, a história já tinha sido feita, com o clube a alcançar a melhor classificação de sempre na sua história.
«Foi algo indescritível, o incêndio vinha completamente violento»
Um ano longo e sinuoso, que começou num dia brutalmente violento mas que acabou com um final relativamente feliz, como recorda ao Maisfutebol o presidente do Pampilhosense, João Neves, numa história que continua a ser escrita com capítulos promissores.
«Foi algo indescritível, o incêndio vinha completamente violento, alguns meios nossos [dos bombeiros locais] ficaram numa outra aldeia e depois os outros meios que tínhamos foram andando sempre atrás do incêndio, não havia muita coisa a fazer», começa por contar ao nosso jornal o também comandante adjunto dos bombeiros.
Por ter um cargo importante nos bombeiros, João Neves ficou de serviço nesse fatídico dia e não acompanhou a equipa até Oliveira do Hospital, mas os «soldados» que foram honrar o emblema de Pampilhosa da Serra não tiveram vida fácil para regressar a casa.
«Sim, eu fui contactando com o mister Carlos Alegre e com o adjunto Jorge Ramos, fomos estando em contacto e de facto sei que eles tiveram de passar por algumas peripécias para conseguirem chegar à Pampilhosa, porque aquela zona também já estava toda tomada, Lousã, Poiares, Oliveira Hospital... eles tiveram que andar ali a ultrapassar algumas peripécias para se conseguirem desviar do fogo.»
Os vários estragos que tiraram o «chão» ao clube pampilhosense
Atarantado com as chamas, o dirigente revela que durante os momentos de maior aperto não pensou que o estádio pudesse ser afetado, até porque não era das coisas mais importantes a proteger, mas admite que o primeiro impacto ao ver os estragos foi duro.
«Só me dirigi ao estádio no dia a seguir ou passado dois dias. Foi algo indescritível, se calhar foi das últimas coisas que eu pensei que fosse afetada naquela altura. Foram dias muito complicados, dependemos muito das nossas receitas, dos sócios, das quotas, das bilheteiras e depois pensar naquilo tudo... mas pronto, foi algo que em vez de nos deitar abaixo tornou-nos mais fortes e todos juntos conseguimos findar a época», confessa.
Os danos, esses, foram vários: parte da estrutura da rega ficou danificada, assim como todos os passeios e todas as redes. Parte da cobertura da bancada sofreu também danos, além do relvado, o problema maior, já que as chamas queimaram metade do campo.
Sem poder jogar em casa, a solução a curto prazo foi pedir às equipas adversárias que invertessem as jornadas, mas depois o clube teve de procurar outras alternativas.
«Depois disto acontecer ainda tivemos esperanças que as coisas fossem mais céleres, mas quando percebemos que não havia quaisquer hipóteses de voltarmos a jogar em casa nessa época começámos a contactar algumas autarquias e alguns clubes para podermos utilizar essa casa como sendo nossa ao domingo. Não quero dizer nomes para não falhar nenhum, mas foram imensos [campos onde o Pampilhosense jogou]», conta.
De um momento para o outro, a formação de Pampilhosa da Serra ficou sem chão: «O que não nos mata torna-nos mais fortes, penso que essa frase se aplica perfeitamente. Quando vimos com os nossos olhos aquilo que tinha acabado de acontecer a sensação foi de que tínhamos ficado sem chão, mas as coisas têm de continuar e nós somos assim, temos esta garra e esta força e em conjunto com atletas, equipas técnicas, e outros colaboradores conseguimos agarrar e tornámos as fragilidades numa força.»
A solidariedade que permitiu o regresso do «típico domingo de futebol em casa»
Além do município da Pampilhosa da Serra e da Associação de Futebol de Coimbra, o dirigente realça o gesto «importantíssimo» da Federação que permitiu que o «futebol de domingo à tarde», tão importante para o concelho, voltasse ao Municipal pampilhosense.
«A FPF também percebeu que era algo que fazia falta, claro que havia coisas mais urgentes a reparar, nomeadamente as pessoas que ficaram sem casas, mas o futebol também faz falta, não só para a prática desportiva mas também para a massa associativa, aquilo a que a gente chama o típico domingo de futebol em casa, em que nos juntamos, em que as pessoas até aproveitam para conviver umas com as outras e isso fazia falta num concelho como o nosso», defende.
Apesar de todas as contrariedades, o Pampilhosense não se desligou dos seus objetivos e acabou a fazer a melhor época de sempre no clube, terminando no quarto lugar da Divisão de Honra de Coimbra.
Para João Neves, os grandes responsáveis foram os jogadores e equipa técnica: «O grande elogio tem de ser dado aos jogadores e à equipa técnica. Eram eles que estavam diariamente mais próximos uns dos outros e acho que eles próprios conseguiram ir buscar forças onde elas poderiam não existir. Eles foram incansáveis lá dentro.»
«Era como quem nos matava»
A cumprir a quinta época no Pampilhosense – a quarta de forma consecutiva –, Ricardo José Teixeira Lopes é um dos mais experientes do plantel e um dos jogadores que viveu por dentro o drama que assolou o clube e o concelho.
Cerca de ano e meio depois da tragédia, Ricky atende o telefone ao Maisfutebol de forma descontraída e bem-disposta, mas na hora de recordar os momentos vividos, não consegue esconder o impacto que ele e os companheiros sentiram quando se depararam com a «casa» queimada.
«Depois do incêndio, quando voltámos lá [ao estádio] para treinar, na terça ou na quarta-feira e vimos aquilo... era como quem nos matava. Tínhamos lá estado na sexta-feira, estava tudo limpinho, o campo todo bonitinho. Na terça-feira chegámos e estava tudo escuro, parecia uma nuvem negra», começa por contar.
«A maior parte dos jogadores é de fora, mas sentimos um bocadinho como se fosse a nossa casa, como se tivéssemos ficado sem casa, sem condições... de um dia para o outro ficámos sem nada, basicamente. Para treinar era só naquele bocadito [metade do campo], e chegarmos lá e estar aquilo tudo negro... a alegria que tínhamos também vinha um bocado abaixo», acrescenta.
Sem campo próprio, o avançado de 35 anos assume que era «uma luta» o Pampilhosense ter campo para treinar, já que andava com a «casa às costas», mas diz que isso não influenciou negativamente a equipa, bem pelo contrário, já que o infortúnio funcionou quase como uma «lufada de ar fresco» que uniu e deu mais força ao plantel.
O regresso a «casa» e a história feita com ou sem Campeonato de Portugal
E o dia do regresso a casa com o relvado novo? «Foi totalmente diferente. Foi como se estivéssemos num túnel, com tudo escuro, e de repente apareceu a luz. Foi inacreditável ver a mudança que houve. Foi um bocadinho como se tivéssemos rejuvenescido, foi o voltar a casa. Sabemos que ali temos o nosso sítio, o nosso local, o nosso cantinho para prepararmos as coisas todas e é onde nós nos encontramos sempre», conta.
Depois da época histórica, o Pampilhosense está novamente nos lugares cimeiros da Divisão de Honra da AF Coimbra (4.º lugar) e a cheirar uma subida ao Campeonato de Portugal.
Se por um lado Ricky não esconde a ambição de subir mais um patamar, por outro o presidente João Neves alerta para o nível de infraestruturas que o clube ainda não tem.
«Se nos passa pela cabeça subir ao Campeonato de Portugal? Passar pela cabeça passa… nós não gostamos de ficar sempre na retranca. Se pudermos não vamos dizer que não. Entramos em campo todos os jogos para ganhar e dignificar a camisola do Pampilhosense. Podemos não conseguir, mas se toda a gente tiver essa ambição ficamos mais perto», argumenta o avançado.
«Se eu puder ficar em primeiro não fico em segundo, mas a nível de estrutura não é fácil. Os campeonatos nacionais envolvem outra estrutura, outros custos e nos também não temos aquele tecido empresarial no nosso concelho [para dar apoios]. O que pudermos fazer para andar lá em cima vamos fazendo. Se todas as conjugações se proporcionassem pensaríamos nisso, mas não e fácil», defende o dirigente.
Com ou sem Campeonato de Portugal, a verdade é que o clube de Pampilhosa da Serra já fez história: o fogo tirou-lhes tudo, mas levantaram-se das cinzas e acabaram a fazer a melhor época de sempre. Esse troféu, já ninguém lhes tira.
Chapeua, Pampilhosense.
FONTE: MaisFutebol