O miúdo com isca que foi Maradona em Novara. “Não lhe ensinei muita coisa. O Bruno já sabia muito, pá...”
Abílio Novais foi treinador de Bruno Fernandes nos juniores do Boavista e conta à Tribuna Expresso alguns episódios do futebolista em miúdo. Salvador Agra e o amigo de infância Mário, com quem jogou sete anos no Bessa, ajudam a definir quem é o jogador do momento em Portugal, que começou a destacar-se em Itália.
Naquela noite fria de fevereiro, no Stadio Alberto Picco, o campo do Spezia, experimentou a glória do golo no futebol profissional pela primeira vez. A bola viajou do lado esquerdo para o direito, dentro da área, sem que ninguém lhe tocasse; nem Seferovic (sim, esse). Bruno Fernandes ficou sentado no chão, frustrado. O argentino Pablo González investiu numa missão de resgate e meteu outra bolinha com veneno. O português, com a camisola 32 do Novara, levantou-se rapidamente e tocou com o ombro da bota. Um golo sublime.
Bruno Fernandes tinha apenas 18 anos, cinco meses e 14 dias. A estreia na Serie B acontecera em novembro de 2012, em casa, contra o Cittadella - entrou aos 77’. A presença do português, primeiro no banco e depois no XI, foi sendo cada vez mais habitual. O médio marcaria mais três golos e, em abril de 2013, começaria a ver o nome associado à gigante Juventus. Depois, os rumores que rapidamente deixaram de ser rumores: a Udinese queria agarrar o craque que andava a encantar na segunda divisão do calcio e a quem chamavam “Maradona de Novara”.
A formação foi partilhada entre Boavista e Pasteleira. Por apenas 40 mil euros, os axadrezados libertaram Bruno Fernandes para o Novara, uma cidade a pouco mais de uma hora de Milão. “Não lhe ensinei muita coisa, que ele já sabia muito, pá”, diz à Tribuna Expresso, na galhofa, Abílio Novais, ex-futebolista e antigo treinador de Bruno Fernandes nos juniores do Boavista. “Era um miúdo extraordinário. Tinha muita vontade. Gostava de aprender, de ir treinar. Ia com alegria e paixão.”
Mário, amigo de longa data, conheceu o jogador do Sporting nos infantis, em 2005. "Jogámos no Boavista até 2012, quando o Bruno saiu para Itália. Foram sete anos. O futebol tem destas coisas boas. Começamos a jogar muito cedo e permitem-se amizades num contexto diferente, com estímulos diferentes. Crescemos em grupo. O Bruno foi um bom amigo que eu fiz no futebol", recorda à Tribuna Expresso.
Fernandes ainda era juvenil quando Abílio o puxou para o escalão acima. Às quartas-feiras, os horários da escola não permitiam ao médio ir ao treino, por isso ele deu um jeito. “Ia treinar às 14h. Estava lá no estádio com um guarda-redes e o meu adjunto, o Petronilho. ‘Fogo, mister, treina mais do que sei lá o quê’, dizia-me o Petronilho. Tinha paixão pelo jogo, uma enorme vontade para chegar a profissional. Sempre foi exemplar e uma excelente pessoa”, esclarece.
"O Bruno é um rapaz normal, divertido e muito acessível", continua Mário, desafiado a esboçar um miniperfil. "É muito ligado à família e amigos. É atento às pessoas que o rodeiam. É sincero, muito frontal. Tem uma personalidade forte, é muito trabalhador e determinado."
Só esteve um ano em Novara, terra do hóquei. Entre 2013 e 2016 jogou com a camisola da Udinese, uma equipa com outro estatuto no futebol italiano. Por ali conviveu com alguns nomes importantes, mas provavelmente nenhum tão pesado como o de Antonio di Natale. E foi da boca desta velha raposa que saíram rasgados elogios para o português. “O Bruno Fernandes irrita-me porque é jovem e é o que tem mais qualidade entre todos nós. Tem uns pés incríveis, mas às vezes acomoda-se durante os jogos”, disse o então capitão em 2015.
O puxão de orelhas e a dica de que não interessa fazer dois bons jogos e desaparecer parecem ter moldado o futebolista.
Abílio Novais, de 51 anos, lembra outro episódio em que teve de apertar com o jovem médio. “Uma vez meti-o a chorar”, diz enquanto solta uma pequena gargalhada. “Foi um jogo qualquer, talvez com o Varzim, aqui no Bessa. Era daqueles dias em que ele não passava a bola a ninguém. Gostava de fazer tudo. Estava com isca, como a gente diz. Eu estava suspenso, a ver o jogo no camarote. A palestra, ao intervalo, foi só para ele. Aquelas coisas que um treinador diz: ‘Vais já com o... [detém-se]’. Quase 10 minutos. Ele começou a chorar e eu disse-lhe: ‘Agora vai lá para dentro e vê lá se começas a jogar direitinho com os teus colegas’. Fez uma segunda parte excecional.”
Bruno nunca esvaziou a gaveta emocional onde o Boavista mora. Há quase um mês, antes de um jogo no Bessa, publicou as fotos em cima no Instagram. “Uma década separa estas duas fotos onde o cabelo diminui mas os sonhos aumentaram!", escreveu. "Estarei sempre grato ao Boavista e o Bessa será para sempre a minha casa. Obrigado a todas as pessoas do mágico xadrez que ao longo dos anos me ajudaram a concretizar os meus sonhos.”
Depois de mais uma época na Serie A, desta vez pela Sampdoria, mudou-se finalmente para Portugal, entrando pela porta grande. “Para mim, é uma oportunidade importantíssima jogar num clube com a grandeza do Sporting. A escolha foi fácil, até por saber que me queriam tanto”, disse na altura. “Na próxima temporada, pretendo ultrapassar o número máximo de golos que já atingi numa época.” O recorde de Fernandes era cinco. Marcou 16 (11 na liga) no ano de estreia.
Bruno Fernandes, nascido na Maia há 24 anos, acaba de resolver um dérbi que coloca o Sporting em mais uma final da Taça de Portugal. Foi com a canhota, o pé menos forte, que exibe ainda assim uma técnica apurada. O futebolista é fino, comprometido, ousado e escolhe caminhos improváveis. Arrisca e está ligado durante os 90’. Talvez se lembre todos os dias das palavras de Di Natale.
"O futebol é a paixão dele", confirma Mário. "Adora o que faz, entrega-se completamente. Quanto aos grandes golos, o Bruno nunca foi muito de se gabar. Não é o estilo dele. Mas realmente é uma característica que tem, aquele pontapé fantástico. Sempre teve aquele pontapé forte."
Abílio, campeão nacional pelo FC Porto em 89/90, recorda um episódio que ajuda a compreender a mentalidade de Fernandes. “Lembro-me de um jogo, com o Gil Vicente, em que estava à rasca de central e ele prontificou-se logo: ‘Ó, mister, olhe que eu joguei a central nos iniciados’. E meti-o a central, e jogou muito bem. Também jogou a ponta de lança em Braga. É um miúdo diferente, estava dois ou três anos à frente dos outros. Sabia ocupar as posições, definir os espaços. Claro que em Itália aprendeu muito, era mais jogo posicional. Aprende-se muito por lá.”
O ex-treinador garante que o futebol do “discreto” Fernandes mudou pouco, nos conceitos e ideias. Chutava, driblava e passava como hoje. Claro que define melhor, sabe o que o jogo pede. “Não enganava ninguém com 18 anos.” Faltava-lhe apenas uma coisa: “Precisava de melhorar o timing certo para soltar a bola. Era pouca coisa. Com o tempo aperfeiçoou. Ele sabia quase tudo…”
Mário jogava a número 9 e beneficiou do pé e da visão de jogo do amigo de quase sempre: "Era uma maravilha". E revela um traço que, acredita, o leva para outros voos. "Muitas vezes troca ideias com os mais próximos, sobre o que aconteceu no jogo e correu menos bem. Tem essa capacidade, a noção perfeita dos momentos bons e menos bons. Faz um exame ao seu jogo e tira conclusões. A preponderância no jogo da equipa tem muito a ver com esta capacidade. Tem essa preocupação em melhorar."
Esta época, diz o transfermarkt, Bruno Fernandes leva 45 jogos, 26 golos e 14 assistências. O número 8 de Alvalade festeja um golo a cada 152 minutos. Está apenas a um do recorde de Frank Lampard, que ainda é o médio com mais golos numa temporada (27).
E quando não ganha, que tal? “Era ranhoso”, ri-se Abílio, revelando um rapaz que queria sempre a bola. “Era aziado como tudo. Mas no bom sentido, não é?"
Salvador Agra, atualmente no Legia de Varsóvia, partilhou balneário com Fernandes nos Jogos Olímpicos, no Rio de Janeiro, e confirma à Tribuna Expresso o mau feitio do médio depois de uma derrota numa peladinha. "Não gosta de perder nem a feijões e quer sempre estar por cima. Nesse treino perdeu e não queria aceitar."
E acrescenta: "É um jogador fantástico, com imensa qualidade e para patamares muito mais elevados. É um bom colega de balneário e, arrisco-me a dizer, um bom líder. Aprecio muito o chuto do Bruno. Tem um jogar inteligente e percebe o jogo como ninguém".
Desde aquela noite em La Spezia, o momento em que descobriu a melhor maneira de meter o coração dele e o dos outros a mil, Bruno Fernandes conta com 62 golos e 42 assistências.
Abílio desconfia que haverá um jackpot no verão em Alvalade. E garante: “O Bruno joga em qualquer equipa e em qualquer campeonato. Ele adapta-se. Se calhar, o mais difícil era Itália. Ele conseguiu. Agora está um jogador feito”.
FONTE: TribunaExpresso