Ele é a leyenda
Lisandro López conquistou o título argentino pelo Racing, sagrando-se o melhor marcador do campeonato. Nunca ninguém tão velho conseguiu tal proeza na Argentina, mas tudo o que ele quer é sentir-se realizado.
- Escribano, ¿qué es Racing para usted?
- Pero, una pasión, querido.
- ¿Aunque hace nueve años que no sale campeón?
- Una pasión es una pasión…
- ¿Te das cuenta, Benjamín? El tipo puede cambiar de todo, de cara, de casa, de familia… de novia, de religión, de Dios… pero hay una cosa que no puede cambiar, Benjamín: no puede cambiar de pasión.
Aquela cena de “O Segredo dos Seus Olhos” vive entranhada no roteiro da alma do Racing, que no domingo conquistou o 18.º campeonato da sua história. A paixão do hincha do Racing é de outra estirpe. Já o avisara Norberto, um homem que vende camisolas-relíquias de futebol no Mercado de San Telmo, em Buenos Aires, e que, há 104 semanas, puxou-me uma cadeira para mais de duas horas de conversa sobre tudo. Norberto decifra, através do toque no tecido, quem é verdadeiramente apaixonado por este desporto. “Este é um país de masoquistas. Quanto pior está o clube, mais camisolas compram. Mas não há como os do Racing…”
Este clube histórico venceu 15 títulos entre 1913 e 1966 e depois viveu uma seca tremenda, que só acabou em 2001, com réplicas em 2014 e, finalmente, 2019.
Esta liga não perdeu valor por não ter sido ganha entre cotoveladas com River ou Boca. Foi o sedutor Defensa y Justicia, de Sebastián Beccacece, a alimentar a dúvida. No final, sorriu e berrou o Racing de Eduardo Coudet. “Uma equipa moralmente indestrutível”, assim a definiu o treinador após o empate com o Tigre, que ditou o campeão quando ainda falta disputar um jogo.
“O Defensa y Justicia jogou muito bem nesta época e o Beccacece deu-lhes um futebol audaz, mas o título não fica nada mal ao Racing, clube que tem a singularidade dos minicampos azuis à volta do relvado do ‘Cilindro’", diz à Tribuna Expresso Luís Catarino, comentador de futebol da Sport TV. “Na campanha do Racing há um momento crucial, que é o renascimento, depois da eliminação nos oitavos da Libertadores, em agosto, contra o River Plate. Foi a altura em que o Lisandro se tornou verdadeiramente no caudillo da equipa, norteando o Racing para um objetivo definido: a liderança do campeonato. E fê-lo da forma mais inspiradora, à imagem do Diego Milito na época em que voltou ao ‘Cilindro’”.
Pois é: o rosto maior da reconquista dos futebolistas de Avellaneda é familiar para os portugueses. Lisandro López, o avançado que passou quatro anos no FC Porto, é o farol desta gente. Basta ler esta entrevista ao “La Nación” para compreender quem é este senhor que odeia as falsidades do futebol profissional e que se considera um homem normal.
Lisandro, escudado pelo agora diretor e superlenda Diego Milito, não é o farol apenas pelo que joga e diz, mas também pelo que é. "Nos últimos anos, converteu-se num ídolo para todos os hinchas, por todo o profissionalismo, compromisso e amor pelo clube", explica à Tribuna Expresso Vicente Muglia, jornalista do "Olé". "Deu mostras disso nos seus atos, sendo um jogador muito profissional, que é um exemplo para os seus companheiros. Há vários jogadores do Racing que o elogiaram muito pelo que tem feito. Ele, com 36 anos, deu o exemplo ao ser o primeiro na hora de treinar, não faltar a nenhum treino, não chegar tarde, estar sempre à disposição do treinador Eduardo Coudet. Foi, sem dúvida, a figura e símbolo do Racing campeão."
Aos 36 anos, Licha foi o melhor marcador do campeonato, com 17 golos em 23 jogos, e bateu alguns recordes. Comecemos por aqui: é o goleador mais velho do campeonato, com 36 anos e 29 dias, ultrapassando assim José Sand (Lanús), em 2014, quando foi o artillero com 35 anos, 10 meses e 12 dias, conta o “Clarín”.
Muglia não tem dúvidas: "Foi o jogador mais determinante, o mais decisivo pelos golos que marcou. Deu assistências, participou ativamente na grande maioria das jogadas de ataque do Racing. Foi o melhor futebolista deste campeonato".
Nunca se tinha visto um homem ser o melhor marcador duas vezes com um intervalo de tempo tão grande. Lisandro consegue-o 15 anos depois, desta vez deixando para trás o recorde de Carlos Bianchi, que o conseguiu numa baliza de 11 anos.
O capitão cumpriu um sonho de menino. Na hora da euforia, da tensão esvaziada que se aperalta de alegria, Lisandro preferiu recolher ao balneário, onde chorou longe de quem o queria adorar.
“Amo e senhor da equipa e também do campeonato”, escreve o “Olé” esta segunda-feira. “Licha teve o prazer de festejar um título que tanto procurou e mereceu. Golos de todas as cores para ser o melhor marcador do torneio, golos em momentos importantes, sangue frio, coração quente e a palavra (em privado e público) certa em todas as alturas. A grande figura do campeão.”
O perfil do avançado que passou pela Invicta mantém-se. “O Lisandro foi um dos avançados mais completos que passou por Portugal nos últimos anos”, continua Catarino. “Tem categoria a rematar e marcou em quase todos os jogos nesta edição ganha pelo Racing. No domingo, contra o Tigre, fez um bonito chapéu ao guarda-redes, mas a trave negou-lhe o golo. Controla e movimenta-se com inteligência para refinar jogo perto do meio-campo e mantém a mentalidade insaciável no cumprimento das tarefas de pressão e cobertura, algo que já víamos no Dragão. Nunca lhe vimos sinais de vedetismo. Pelo contrário, nota-se bastante altruísmo, como na assistência para o golo de Zaracho no dérbi na Doble Visera, por exemplo.”
Vicente Muglia diz que o atleta natural de Rafael Obligado foi apurando o seu jogo. "Com o passar dos anos, modificou um bocado a sua maneira de jogar. Hoje, com 36 anos, perdeu alguma chispa, no que tem a ver com velocidade, mudança de ritmo ou desequilíbrio no mano a mano. O que perdeu com os anos, foi ganhando em velocidade mental. Converteu-se num jogador muito inteligente, a aproveitar os espaços, a movimentar-se em zonas que podia desequilibrar e definir. Foi sempre um dos primeiros defesas na hora de recuperar a bola."
Na tal entrevista ao “La Nación”, em que transbordou normalidade, Licha foi desafiado a pensar-se enquanto lenda.
- Ser ídolo é um prazer, uma carga…?
- O que é ser ídolo?
- É as pessoas adorarem-te. Esperarem para te ver, que fiquem agradecidas porque as fazes felizes nessa semana.
- Assim é horrível! Se me explicasses de outra maneira… Eu sinto o grande carinho das pessoas do Racing, e também o seu respeito, mas daqui a um tempo vão pedir-me “por favor, retira-te, velho" e "a c…[impropério]". Eu, mais do que salvar-lhes a semana, quero oferecer-me uma satisfação. Se depois a dou aos adeptos, muito melhor…
O prazer, apesar das esperas que parecem eternas, não é desertor. Nem o bizarro: Gabriel Aranda, um adepto que faz pensar nas palavras de Norberto, abriu o jazigo do avô Gabriel e levou o crânio para o jogo e festa do título.
"Certamente está feliz e orgulhoso por participar na festa do título..."
FONTE: TribunaExpresso