Bruno de Carvalho, o homem sobrenatural que se rodeou de traidores e incompetentes (o livro “Sem Filtro”, por Bruno Vieira Amaral)

Das inúmeras qualidades de Bruno de Carvalho que o país pôde testemunhar ao longo dos cinco anos e meio em que ocupou o trono de Alvalade há uma que se destaca das demais: a capacidade quase sobrenatural de se rodear de pessoas incompetentes, traiçoeiras ou de mau caráter, ou que conseguiam a proeza de juntar todos estes atributos. O que se conclui da leitura de “Sem Filtro – As Histórias dos Bastidores da Minha Presidência” é que Bruno de Carvalho fez tudo bem, demonstrou ser um negociador implacável, um profundo conhecedor dos meandros do futebol, um brilhante avaliador de jogadores, um gestor do mais alto gabarito, a não ser quando fez tudo mal, demonstrou ser um negociador tíbio, não perceber nada do funcionamento da indústria do futebol, ser um péssimo avaliador de jogadores e um gestor desorganizado.

A tese do livro é a de que tudo o que fez de mal foi por não estar rodeado de pessoas capazes de lhe dizer que estava a agir mal. O facto de essas pessoas terem sido escolhidas por ele resulta, segundo o que se pode ler, não tanto do seu fraco juízo como de uma dessas fatalidades que tem de enfrentar todo o homem apostado em lutar contra o mundo e os seus interesses obscuros.

O presidente que conseguiu descortinar as qualidades de Islam Slimani num vídeo de má qualidade fornecido por empresários argelinos foi o mesmo que ofereceu um contrato de quatro anos a Marco Silva para chegar à conclusão, ainda na pré-época, de que tinha cometido um erro terrível. É pena que noutras contratações, de treinadores e jogadores, e até nas suas escolhas amorosas, pois o próprio não se coíbe de falar desses aspetos da sua vida privada, não tivesse podido contar com o auxílio de vídeos tão elucidativos como o dos empresários do jogador argelino.

Se há um consenso sobre a presidência de Bruno de Carvalho, é o de que as suas escolhas para treinador foram todas irrepreensíveis. Cada tiro, cada melro. Sem ironias. De facto, haveria pouco a apontar às escolhas de Leonardo Jardim, Marco Silva e Jorge Jesus para orientarem a equipa principal de futebol do Sporting.

Mas há pelo menos uma pessoa a romper o consenso nacional à volta dessas decisões. É o próprio Bruno de Carvalho. Se para Leonardo Jardim só tem elogios, para Marco Silva e Jorge Jesus reserva todas as críticas. Com o ex-treinador do Estoril, “a primeira escolha” para suceder a Leonardo Jardim, o “homem certo”, “muito jovem”, Bruno de Carvalho debateu tudo “até ao mais ínfimo pormenor” e explicou-lhe exatamente o que pretendia para o futebol do Sporting.

Porém, deve ter havido um problema de comunicação nessas pormenorizadas discussões preparatórias porque, ao fim de algumas semanas, Marco Silva afinal não queria os jogadores da formação e não tinha intenção de apostar em João Mário para número 10. Incrédulo, Bruno de Carvalho concluiu que o treinador que tinha contratado não só estaria ao serviço de interesses de empresários e de fundos, como também teria o objetivo maquiavélico de o afastar da presidência do clube.

Perante esta avalancha de supostos comportamentos lesivos da instituição o que fez o “presidente sem medo”? O próprio explicou à restante direção: “Sei que é errado deixá-lo ficar, mas é absolutamente vital permitir-lhe fazer uma época, para que os nossos adeptos não pensem que andamos a brincar ao futebol demitindo um treinador que acabámos de contratar para quatro anos.”

O homem que viera para abalar as estruturas do futebol português, o audacioso líder que não temia enfrentar quem quer que fosse, era obrigado a constatar, com tristeza, que estava refém “ainda que temporariamente, desse enorme erro chamado Marco Silva.” Ao todo-poderoso e abrasivo presidente, só restava uma solução diplomática: falar com Marco Silva. Não uma, não duas, mas várias vezes. Mas, no treinador que tinha ido buscar ao Estoril-Praia, encontrou um adversário à altura, que fazia orelhas moucas às palavras do presidente: “foi o treinador com quem falei mais vezes, com quem tive necessidade de reunir mais vezes, com quem me chateei mais vezes. De nada serviu.” Que pungente confissão de impotência.

Ainda por cima, Marco Silva, segundo Bruno de Carvalho, beneficiava da proteção da imprensa. Cansado de ouvir por toda a parte elogios ao treinador com quem se incompatibilizara, o presidente contactou dois comentadores do Sporting, Eduardo Barroso e José Eduardo, para os esclarecer sobre quem era na verdade aquele rapaz que eles tanto incensavam na televisão: “o meu interesse era que eles moderassem aquela exultação constante ao nosso treinador. Era quase a apologia do novo Mourinho. Atenção: não se tratava de uma cartilha, nem eu queria que eles dissessem mal do Marco.” Não, nada disso.

O presidente do Sporting só não queria que os comentadores afetos ao clube fossem tão pródigos em elogios ao treinador do clube. Ora, José Eduardo, que era à época um dos mais estrénuos defensores de Bruno de Carvalho, não guardou para si a informação e, em declarações à RTP, papagueou o que lhe fora dito pelo presidente. Bruno ficou siderado: “Ficou a ideia de que ele teve aquele discurso por indicação minha. Mentira!” A desilusão, mais uma, com José Eduardo teve pelo menos o mérito de ensinar uma lição a Bruno de Carvalho: “mais vale um inimigo inteligente do que um amigo burro.” O problema é que quase todos os amigos, cedo ou tarde, davam mostras de burrice.

Com Jorge Jesus, Bruno de Carvalho não foi tão lesto a descobrir a dimensão do erro que tinha cometido. Até porque a contratação do ex-treinador do Benfica foi saudada, com alguma razão, como um golpe de génio. É claro que o presidente, sempre muito perspicaz, foi percebendo com quem estava a lidar. Logo na apresentação viu que Jesus estava “obcecado em ter a certeza de que ninguém iria roubar-lhe um pingo de protagonismo. Era 'eu, eu e eu.'”

Uma situação que imaginamos não ter sido nada fácil para alguém tão modesto e recatado como Bruno de Carvalho, para quem “era difícil fazê-lo perceber [a Jorge Jesus] que o Sporting era mais do que o Jorge Jesus.” Afinal, “estamos a falar de um treinador que consome toda a gente que o rodeia.” (não estranhe o leitor se, por vezes, tiver a sensação de que Bruno de Carvalho se está a descrever a si mesmo.)

Mais tarde apercebeu-se de outros aspetos da personalidade do técnico, para o qual “a simples ideia de haver uma pessoa que não gosta dele é absolutamente insuportável”. Jesus mostrava-se “um homem bastante influenciável e sempre muito preocupado com o que os outros dizem sobre ele.” Contudo, havia uma pessoa que tinha muitas dificuldades em influenciar este homem tão influenciável: uma vez mais, o próprio Bruno de Carvalho.

De acordo com o ex-presidente, Jesus queria que fosse a sua equipa pessoal a assumir a responsabilidade na negociação dos jogadores. Bruno de Carvalho, assertivo, respondia-lhe: “há aqui um presidente e uma direção para fazer esse trabalho. Você diz quem quer e nós tentamos. Nós fazemos o nosso trabalho, você faz o seu.” É o próprio ex-presidente que reconhece que Jesus, o influenciável, não lhe ligava pevide: “Ele ouvia sempre o mesmo, mas fazia sempre o mesmo.”

Temos então um retrato, feito pelo próprio, de um homem que vence negociadores experimentados da banca, põe José Maria Ricciardi a pedir-lhe perdão de joelhos (“Ó homem, está tudo perdoado, mas, por favor, levante-se do chão. Passa aqui alguém, veem-no de joelhos e ainda ficam a pensar outra coisa”, terão sido estas as palavras revisteiras de Bruno de Carvalho para Ricciardi), arquiteta planos de um brilhantismo pérfido para se livrar de treinadores, consegue as maiores vendas de sempre do clube, mas em 4/5 do seu reinado, com 2/3 dos treinadores por si escolhidos, parece completamente refém dos seus subordinados.

O caso mais gritante terá ocorrido na última jornada do campeonato 2015/16 que o Sporting, como é habitual, quase venceu. A equipa leonina jogava nessa tarde em Braga e não dependia de si para ser campeã. Se o Benfica ganhasse em casa ao Nacional revalidaria o título. Ora, segundo Bruno de Carvalho, Jesus terá aproveitado o momento para exigir a renovação e um aumento substancial recorrendo, ainda segundo o ex-presidente, ao velho truque de uma oferta do Porto. Velho porque era do conhecimento público que, após a conquista do primeiro campeonato no Benfica, Jesus teria recebido uma proposta do Porto que obrigou Luís Filipe Vieira a abrir os cordões à bolsa para não sofrer a ignomínia de, no ano seguinte, ver o treinador que lhe dera o campeonato a treinar no Dragão.

“Jorge, mas vamos falar nisso agora? O jogo está quase a começar”, terá dito um cândido Bruno de Carvalho que, logo a seguir, ainda em pânico, ligou para o empresário de Jesus, que lhe confirmou os detalhes financeiros da exigência: oito milhões de euros.

Uma vez mais, o férreo Bruno de Carvalho não teve outro remédio que não o de ceder à vontade de Jesus: “Acabei por dizer que sim, porque o jogo estava quase a começar e porque o meu treinador me tinha dito que não tinha condições para orientar a equipa num jogo que podia ser decisivo.”

Pelos vistos, não ocorreu a tão sagaz gestor de empresas, tão previdente condutor de homens, dizer ao treinador que não era ali, a minutos do início de um jogo, que iam acertar a renovação e um aumento salarial bastante significativo. Não. Como tinha acontecido com Marco Silva, Bruno de Carvalho via-se de novo na situação de refém de um treinador e forçado a pagar-lhe um ordenado faraónico para se manter assim.

Seria este o mesmo homem que, durante as negociações árduas com o craque Teo Gutiérrez, lhe disse: “compreendo que sejas uma estrela, mas também tens de perceber que o Sporting já chegou ao seu limite e que não vai alterar nada daquilo que estava proposto e que te fez vir para Lisboa”? Seria o mesmo homem que, descontente com o rumo de umas negociações por um obscuro guarda-redes, saiu a meio da reunião e foi para casa sem dar justificações a ninguém? Seria o mesmo homem que enfrentou os representantes do Millennium e do BES na reestruturação financeira e que, perante os sucessivos impasses, atirou os papéis para o ar e vociferou “a reestruturação acaba aqui”? Seria o mesmo homem que, tendo encontrado dois diretores financeiros quando chegou ao Sporting, resolveu o problema com a decisão salomónica de despedir ambos? Parece que sim. Se Bruno de Carvalho diz que Marco Silva era um lobo em pele de cordeiro, dele pode dizer-se que era um cordeiro em pele de lobo ou, quando se tratava de impor a sua vontade aos treinadores, um cordeiro em pele de cordeiro.

Os casos de desilusão com os treinadores com quem conviveu mais tempo durante a sua presidência são apenas os mais óbvios, mas Sem Filtro está cheio de erros de avaliação semelhantes. Recrutamentos infelizes acontecem a todos, até a Nosso Senhor Jesus Cristo, que escolheu Judas como apóstolo. Mas, olhando para o trajeto de Bruno de Carvalho narrado pelo próprio, apetece dizer que nem Júlio César foi apunhalado por tanta gente (diz Suetónio que a conspiração para derrubar o imperador englobou apenas sessenta cidadãos).

A interminável lista inclui Jesualdo Ferreira, treinador herdado da anterior direção e que foi o primeiro de Bruno de Carvalho em Alvalade (“naquele curto espaço de tempo, fez tudo ao contrário do que lhe pedíamos e gerou-nos alguns problemas complicados”), Jorge Mendes (“peça fundamental naquilo que aconteceu ao Sporting”, José Maria Ricciardi (sempre “à espera do momento […] para […] voltar a tomar o poder”), Jorge Jesus (que fez as pazes com Luís Filipe Vieira e falava regularmente com este quando ainda treinava o Sporting), os elementos da direção do Sporting (“alguns deles foram ficando acomodados e já nem sequer estavam a desempenhar as suas funções da melhor forma”), Octávio Machado (“percebeu desde cedo que, para mim, estaria a mais”), Adrien (“pena que o Adrien tenha memória curta”), William Carvalho (a quem terá dito, à frente do restante plantel, “agora todos os teus colegas sabem o mentiroso que és”), Rui Patrício (“o único jogador que fez questão de não me cumprimentar”), Carlos Pinho, presidente do Arouca (“andava a contar mentiras nos bastidores do futebol português”), Jaime Marta Soares (“estava a mentir aos sócios do Sporting”), Frederico Varandas (putativo autor da célebre fotografia de Bruno de Carvalho deitado numa maca a receber a extrema-unção, perdão, a ser massajado), Fernando Mendes, ex-líder da Juve Leo, que lhe ligou nas vésperas do ataque a Alcochete (“Hoje, depois de tudo o que se passou, acredito que esses telefonemas terão sido premeditados para tentarem incriminar-me”), Bruno Jacinto, oficial de ligação aos adeptos, André Geraldes, braço-direito de Bruno Carvalho e que este reconhece ter ajudado a subir na hierarquia do clube, Carlos Vieira, o mago das finanças e que também tinha o pelouro da segurança (“sabia tanto como eu sobre um dos seus pelouros.

E não pode ser essa a forma de estar numa missão tão importante como é a de representar um clube centenário com a grandeza do Sporting”), o Grupo Stromp, Artur Torres Pereira, Rogério Alves, Álvaro Sobrinho, Nélio Lucas, da Doyen, Sousa Cintra, Godinho Lopes, etc. Do rol de personagens do livro, poucos são os que escapam à pena vingativa de Bruno de Carvalho, incluindo Alexandre Godinho, o empresário Pini Zahavi, o presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Fernando Medina, e Pinto da Costa, que, um dia, vendo-o com frio, lhe ofereceu um casaco para se agasalhar.

De resto, todos os laivos de autocrítica são meros pretextos para atacar mais quem se aproveitou da sua ingenuidade, quem o desiludiu, quem não esteve lá quando ele mais precisava, quem não sugeriu que se calasse quando ele não se conseguia travar a si mesmo. Mas esse é o problema de quem se rodeia de “yes men”. Quando é preciso alguém que diga não, ou já se foi embora ou fica calado. Que Bruno de Carvalho, ao fim deste tempo todo, não seja capaz de assumir a responsabilidade pelos erros que cometeu (e não é aquele assumir do género “o meu maior erro foi contratar fulano, o meu maior erro foi não despedir beltrano, o meu maior erro foi confiar em sicrano”), explica a razão por que os cometeu. Falar das seis vitórias na sequência do “post de Madrid”, esquecendo o descalabro que se seguiu, é de alguém com um problema sério em aceitar a realidade.

Mas é nas críticas que faz à sua ex-mulher Joana Ornelas que Bruno de Carvalho expõe o seu grau de desnorte e paranoia. Afirmações como “comecei a perceber que ela se tinha casado com o presidente do Sporting e não com a pessoa” e “nessa fase da minha vida, fiquei sem um verdadeiro porto de abrigo” seriam sempre manobras deselegantes para justificar erros públicos com situações da vida íntima. Mas, quase no final do livro, surge uma frase ainda mais triste, embora bastante reveladora: “Costuma dizer-se que por trás de um grande homem está uma grande mulher, mas eu não tive essa força da parte da Joana.” Que grande homem seria capaz deste arroto vaidoso e imoral? Pior, só a ameaça que as derradeiras palavras de Sem Filtro deixam no ar: “ainda só estamos no intervalo. Vem aí a segunda parte.”


FONTE: TribunaExpresso