O que está por detrás do milagre do Qatar
O Qatar joga nesta sexta-feira frente ao Japão a final da Taça da Ásia, proeza inédita para uma seleção a fazer um campeonato incrível. Seis vitórias em seis jogos, 16 golos marcados e zero sofridos, recorde absoluto na competição continental asiática. O pequeno emirado chegou aqui com uma seleção que é o corolário de um mega-projeto de Estado que leva mais de uma década de trabalho e uma quantidade incalculável de dinheiro investido. Com muitas ligações até ao topo da pirâmide do futebol mundial e com um centro que serve de base desportiva à operação: a Academia Aspire, uma infraestrutura de luxo que é o núcleo de desenvolvimento do desporto no país, pensada e desenvolvida para chegar a momentos como este.
A campanha do Qatar na Taça da Ásia é até agora o ponto mais alto de todo esse trabalho. E está a surpreender até quem o acompanhou. «O que eles estão a fazer superou as expectativas», diz ao Maisfutebol o português Diogo Gama, que trabalhou na Aspire como coordenador do departamento de metodologia de futebol e terminou agora uma ligação de sete anos ao projeto.
Acompanhou de perto a evolução desta seleção, formada na esmagadora maioria por jogadores da academia. Com poucas exceções e uma delas é Pedro Correia, português que se naturalizou e faz parte desta seleção. São na maioria jogadores de origem estrangeira, uma das singularidades do desporto de alta competição no emirado, onde apenas uma baixa percentagem da população tem passaporte qatari: em 2,6 milhões de habitantes, serão um quarto da população. Um país que tem apenas 17 mil jogadores federados.
«O facto de se nascer no Qatar não dá direito a passaporte qatari. É um emirado, protege muito os locais», explica Diogo Gama, acrescentando no entanto que a maioria dos jogadores da seleção são já nascidos ou criados no país: «90 por cento são qataris ou nascidos no Qatar. Uma das poucas exceções é o Pedro Correia, mas está cá desde os 19 anos. O resto é tudo criado no Qatar.» Essa proteção estende-se aos clubes, diz: «Para poderem competir nos clubes têm que ser quase todos nascidos cá. No futebol só é permitida uma inscrição por clube de jogadores não nascidos. Há uma proteção muito grande aos jogadores qataris.»
É da academia Aspire que vem também o selecionador do Qatar, o espanhol Félix Sánchez Bas, que chegou a Doha em 2006, quando o projeto começava a ganhar forma, depois de ter trabalhado na formação do Barcelona. «O staff técnico já tem 11 anos de Qatar», nota Diogo Gama.
Por trás da campanha da seleção no Qatar está um trabalho que começou em 2004, com a criação da academia que é o braço desportivo da imensa aposta das autoridades qataris, para culminar na organização do Campeonato do Mundo de futebol, em 2022.
Doze campos de futebol, equipas convidadas e clubes comprados na Europa
A academia é uma operação financiada pelo Estado e tudo o que a envolve é em grande. Um investimento sem precedentes num centro de alto rendimento criado de raiz, um espaço de excelência e de controlo de todos os aspectos do processo desportivo. Destinado a todos os desportos, mas com especial foco no futebol. «Tem 12 campos de futebol, um dome, um centro de alta performance também com um semi-dome», vai descrevendo Diogo Gama na conversa com o Maisfutebol. A organização do espaço ajuda a definir prioridades: «Tem um edifício com três andares. O rés-do-chão é só para a seleção nacional, o do meio é só futebol e o de cima para os outros desportos.»
Tem centena e meia de técnicos a trabalhar só no futebol, entre eles quase uma dezena de portugueses, em escalões que começam nos sub-6. E prepara os jogadores com condições únicas. Diogo Gama dá algum contexto sobre o trabalho em torno da atual seleção. Praticamente a mesma que em 2014 conseguiu o primeiro título continental, ao sagrar-se campeã asiática de sub-19. «A Aspire não compete como clube, mas tem como braço de competição as seleções nacionais», diz.
As seleções mais jovens trabalham diariamente na academia, a seleção principal já tem uma lógica um pouco diferente, mas todas as semanas os jogadores fazem também trabalho na academia. A maioria deles jogam nos dois principais clubes qataris, hoje ambos treinados por portugueses: o Al-Sadd de Jesualdo Ferreira e o Al-Duhail, orientado desde meados deste mês por Rui Faria.
«Foi um investimento muito forte sobretudo a partir de 2012 e até 2016», conta Diogo Gama: «Um trabalho diário com os jogadores, técnico e tático, e um esforço de desenvolvimento que incluía, por exemplo, convites a equipas estrangeiras para aumentar o nível de exigência. De quatro em quatro semanas vinham duas equipas da Europa para competir com eles. Houve um investimento muito grande na competição, porque assumiu-se que a competição interna que existia não era suficiente para atingir o patamar que se pretendia. Foram expostos a um nível de competição muito alto e o que se viu nos últimos anos foi que melhoraram muito por aí. Jogadores que jogaram contra grandes equipas agora já não se assustam com as outras seleções, a nível asiático. O objetivo é conseguir isso a nível mundial, mas é mais difícil.»
O Qatar terá em breve uma oportunidade para o testar, porque irá competir no verão na Copa América. Sinal dos tempos, é uma das seleções convidadas para a competição continental sul-americana. Tal como o Japão, o outro finalista da Taça da Ásia.
Outra das abordagens para a evolução dos jogadores foi colocá-los em clubes europeus. Que o Qatar comprou. É o caso do Eupen, na Bélgica, ou do Cultural Leonesa, em Espanha, braços competitivos na Europa. Vários dos jogadores da atual seleção passaram por lá, mas sem continuidade e já regressaram. «A determinada altura considerou-se mais produtivo tê-los num ambiente controlado», diz Diogo Gama.
Uma «bolha» e muitas questões, dos direitos humanos ao Mundial 2022
A Aspire «é uma bolha», admite o treinador português, a propósito dessa ideia da limitação de um futuro profissional para jogadores que recebem toda esta formação. Mas Diogo Gama acredita que alguns dos atuais jogadores teriam condições para jogar no estrangeiro. «Eles têm qualidade porque têm muitas horas de futebol», diz, dando o exemplo de Akram Afif, que já passou pelo Eupen, mas também pelo Villarreal e Sp. Gijón, ou do goleador Almoez Ali: «Tem condições para jogar na Liga portuguesa. Tem uma capacidade de trabalho incrível.»
No início, o projeto incluiu uma enorme rede de «scouting» liderada por Josep Colomer, antigo olheiro do Barcelona creditado com a descoberta de Lionel Messi, com particular enfoque em África. Esse projeto, Aspire Football Dreams, ainda mantém uma academia no Senegal, mas foi entretanto cancelado, no meio também das investigações a Sandro Rosell, ex-presidente do Barcelona, em que se viu envolvido o próprio Colomer.
Diogo Gama diz que no atual projeto das seleções «não há nenhum jogador que venha do projeto africano». Embora haja vários jogadores de origem africana, a começar por Almoez Ali, o melhor marcador da Taça da Ásia, já com oito golos apontados, um dos jogadores que passou também pelo Eupen e voltou ao Qatar, para o Al-Duhail.
Além do desfecho do projeto Footbal Dreams, há vários focos de controvérsia em torno de todo o investimento do Qatar, e muitas questões. A começar pela forma como foi atribuída ao país a organização do Mundial 2022, um processo que levou a investigações por suspeitas de corrupção e no limite à queda da anterior liderança da FIFA e de Joseph Blatter, e que envolvia também a forma como a academia Aspire foi utilizada junto dos membros do Comité Executivo que participaram na eleição. Depois há o investimento do Qatar no PSG, que ainda este mês estagiou na Aspire, tal como fazem várias outras equipas de topo da Europa. Ou a questão dos direitos humanos e nomeadamente dos direitos dos trabalhadores que estão a construir os estádios e as infra-estruturas para o Mundial.
Diogo Gama diz que o foco sobre o Qatar já levou a algumas mudanças. «Já está a haver, já existe. As leis laborais mudaram muito nos últimos anos. Pelo facto de estar a ser exposto mediaticamente, as coisas estão a mudar», afirma, defendendo que no Qatar até há menos limitações a direitos fundamentais do que noutros estados vizinhos: «O que não acontece noutros países aqui próximos. Eu se estiver no Dubai não tenho acesso ao Facetime. Aqui tenho. Noutros países as pessoas não têm liberdade de expressão porque as comunicações estão controladas.»
Ao fim de sete anos no país, o técnico português assume uma afinidade que vai ficar. E deixa a sua opinião pessoal sobre o fenómeno do investimento do Qatar e a sua estratégia de subir a pirâmide à custa de dinheiro: «O mundo é invejoso. O que eles estão a fazer é único, não há ninguém que se tenha disposto a dar tanto ao futebol como eles. É uma questão de orgulho para eles. Quem me dera a mim que as coisas fossem assim noutros lados», atira: «É muito fácil apontar o dedo. O processo de candidatura ao Mundial não foi transparente. Algum deles foi? O problema é que o Qatar é pequeno. Os ingleses fizeram muito barulho porque o Qatar cancelou uma série de contratos que tinha com eles por não terem votado no Qatar. O PSG é um caso à parte. Não faz parte da visão nacional para o desporto. É detido através de um fundo de investimento.»
O embargo político, sapatos a voar e sinais de desinvestimento
Para lá do jogo estratégico no futebol, o Qatar enfrenta nesta altura uma situação de crise geopolítica na região, com o corte de relações diplomáticas decretado por vários dos seus vizinhos, incluindo a Arábia Saudita, os EAU ou o Bahrein, com o argumento de que o emirado protegia grupos terroristas. Esse corte traduziu-se num embargo comercial e de transportes, além de tensão política que tem sido evidente também na Taça da Ásia.
O jogo da meia-final com os Emirados foi o exemplo maior dessa tensão. As autoridades locais ofereceram bilhetes para a partida, no estádio o ambiente era hostil. Mas o Qatar foi marcando golos, um, dois, três e quatro. E cada golo era recebido com objetos atirados das bancadas, incluindo sapatos, forma limite de insulto.
O embargo refletiu-se também no próprio investimento do Qatar. Diogo Gama diz que isso se nota já na academia, onde a aposta financeira tem vindo a diminuir: «Há vários factores, incluindo o problema do embargo, o que antes custava um dólar agora custa três. As coisas têm que estar prontas até 2021 para o Mundial. As coisas estão muito mais caras e tiveram que definir prioridades.»
Além disso, com 2022 a aproximar-se, também a aposta no objetivo desportivo diminui. «Já assumiram que jogadores formados agora não têm a capacidade de chegar ao Mundial. Está a haver um desinvestimento nisso», diz Diogo Gama.
Se 2022 significará o fim do mega-projeto desportivo do Qatar, ainda não dá para ter certezas. Diogo Gama acredita que não: «O projeto Aspire não vai acabar. É o centro de alto rendimento do país e há vida depois do Mundial. Haverá outros objetivos, como uma futura qualificação para o Mundial. Isto tem um efeito tipo bola de neve, com esta prestação o Qatar sobe no ranking, ganha outro estatuto, o nível melhora. É um bocado o que aconteceu em Portugal com o Carlos Queiroz e a criação do departamento de futebol na Faculdade de Motricidade Humana.»
FONTE: MaisFutebol