Elisabete Jacinto: “Quando cheguei do meu primeiro Dakar a minha mãe disse-me: 'Ai filha, envelheceste tanto'. Não tinha levado cremes”

O que significa esta vitória?

É a recompensa deste anos todos de trabalho. Já há dois ou três anos que tinha atingido um bom nível de condução e era capaz de alcançar um lugar destes, só que, faltava-me a parte técnica. O seja a minha evolução como piloto foi feita em paralelo com a evolução do camião. Até que chegou uma altura em que precisava de duas ou três coisinhas, e em que nós apostamos.

O quê?

A suspensão, os amortecedores. Mas não foi fácil. Investimos nuns amortecedores xpto, que todas as equipas tinham e que eram muito bons, mas connosco não funcionaram bem, o que foi estranho. Depois mandamos o motor para a Alemanha porque sentia que precisava de um bocadinho mais de potência para subir as dunas de areia mole. E quando o motor chegou fui fazer o África Race e na 2ª etapa o motor partiu. Por outro lado, precisava de comprar umas jantes de alumínio para poder baixar muito a pressão dos pneus. Há um ano e tal compramos umas jantes, o homem garantiu que era chegar, pôr e tudo funcionava. Pagamos e quando as fomos montar elas não estavam nada adaptadas ao nosso camião. Foi um grande melão e demorámos muito tempo até conseguir adaptar as jantes, porque o tipo que as vendeu não fez coisa nenhuma. Este ano finalmente consegui reunir estas condições todas. Ou seja, à última da hora acabei por tomar a decisão de investir noutros amortecedores que me permitiram andar muito depressa, com segurança em Marrocos, e como tinha as jantes a funcionar consegui baixar muito a pressão naquelas zonas de areia mole e consegui progredir. O que fiz agora em termos de capacidade de condução foi o mesmo que teria feito há dois ou três anos, só que nessa altura eu parava, uma, duas ou três horas a cavar; agora não, consegui passar sempre. Mas é claro que no meio destas coisas é preciso ter o fator sorte do nosso lado. Acho que até isso tive este ano.

Chegada aqui vai fazer um balanço e repensar se vai continuar a competir?

Acho que sim. Mas, por mim, eu adoro correr. É uma coisa que me realiza em pleno. Fiz muitos sacrifícios, aguentei muitas coisas que não me agradavam só para ter condições para continuar a correr.

Que coisas é que não lhe agradam?

Pedidos que me fazem, a que tenho de dizer que sim, e às vezes custa. Trabalho que nem uma moura e dou o meu máximo para conseguir que os patrocinadores achem que sou um bom investimento e para continuar a correr.

Neste momento vive só dos patrocínios?

Sim. Mas eu faço um trabalho muito ingrato para o qual não tenho condições. Isto é, eu faço uma omelete fantástica mas não ponho lá quase ovos nenhuns. Quero dizer com isto que, por exemplo, o camião é nosso e somos nós que fazemos todo o trabalho de mecânica e toda a evolução técnica. Mas eu não sou engenheira mecânica, sou professora de geografia, o Jorge (Jorge Gil, marido e team manager da equipa) também é licenciado em Geografia e o nosso mecânico tem o 9º ano, não é engenheiro. E não temos ninguém em Portugal que tenha um camião a correr, que tenha conhecimento da competição que nos possa ajudar. O exemplo das jantes, quando percebemos que não funcionavam foi uma golpada muito duro. Mas tivemos de puxar pelos neurónios e dar a volta à questão e nós próprios acabámos por adaptá-las. O orçamento está definido desde início. Mas este é só um exemplo, posso dar outros em que as pessoas não me levam a sério.

Explique lá isso.

Vou mandar fazer uma peça de qualidade e às vezes a reação é: "Ah, é para o desporto, é para brincar". E toca a despachar, fazem a coisa de qualquer maneira, não se respeita prazos. Muitas dessas pessoas, como não estão habituadas a trabalhar com este meio, não têm conhecimento, não estão preparadas e não acreditam quando dizemos que precisamos de uma peça muito forte. A tendência é para dizerem: "Ah, isso não parte". E depois vamos para uma corrida, aquilo parte e perdemos a corrida por causa disso.

Porque não vão comprar fora, onde vão as outras equipas?

É uma opção nossa, tentamos sempre fazer cá. O próprio patrocinador de início pediu para que colaborássemos com a indústria portuguesa. Depois, ele deixou-se disso, até porque houve uma altura em que era praticamente impossível fazer as coisas cá. Posso dar mais um exemplo: preciso de um suporte de amortecedores num aço muito especial que só é utilizado em Portugal na indústria dos moldes. A certa altura, pedi ao senhor para fazer outro suporte com o mesmo aço e ele, sem nos informar, fez com um aço diferente porque não tinha acesso àquele e quando demos por ela tínhamos as peças partidas, numa prova. Podia ter feito um bom resultado e não fiz porque a peça partiu. Estamos a falar de peças que custam milhares de euros. Mas lá está, ele disse: "Ah, o aço não é igual mas isto também serve". Mas não serve. Também por isso é uma fase de balanço, porque eu gosto muito de correr, mas não quero correr para ser a última do campeonato, mais a mais se já provei a todas as pessoas que sou capaz de conduzir bem.

Mas por sua vontade continuava a correr.

Sem dúvida. Os anos passaram e tenho feito cada vez melhor, não venham com a história da idade, não é isso que me limita. Mas quero continuar a correr competindo sempre para o topo.

Há alguma prova em especial que ainda queira conquistar?

É sempre esta corrida e é o Marrocos Desert Challenge que é a corrida onde temos mais camiões e é uma prova extremamente difícil porque o organizador nunca foi piloto e põe os camiões a fazer coisas absolutamente disparatadas e difíceis. Mas uma pessoa gosta daquilo que é difícil (riso). No fundo gostava de consolidar a imagem de bom piloto.

Ao longo dos anos foi sempre isso que quis provar, que é boa piloto?

Sim. Porque lido com o descrédito. E não estou a falar a nível internacional, porque aí acho que sou bem vista, estou a falar em Portugal.

(o marido interrompe)

Jorge: Cá nunca vai ser reconhecida porque a Elisabete anda de camião e as pessoas que andam de carro fazem parte de uma elite. Em Portugal, não temos o desporto pelo desporto, temos uma elite, que são pessoas com dinheiro próprio. Se formos ao campeonato nacional de TT, diria que 95% dos participantes estão lá a correr com o dinheiro deles, dos negócios que têm ou que a família deixou. Seja o que for, é uma elite. Por outro lado, a Elisabete é mulher, logo já não faz parte da elite, porque o género conta muito. E vou dar um exemplo. Não vou dizer o nome da pessoa em questão, mas há um piloto do qual as pessoas gosta muito porque é novinho e conduz bem, que foi fazer uma corrida agora e disse: "Vou lá para ganhar". Ele ficou em antepenúltimo e agradeceu porque conseguiu acabar uma prova muito difícil. Estamos de acordo, Mas agradeceu e achou que era uma vitória. Se a Elisabete fosse dizer a alguém que ia lá para estar no pódio e a seguir dissesse que foi uma grande vitória, acabando em antepenúltimo, era crucificada logo. Mas ele, como é homem e faz parte de um grupo, as pessoas protegem e acham que é normal.

Mas a questão de género não é exclusivamente portuguesa.

Jorge: Não. Mas os holandeses que são extremamente sexistas e chegaram a atirar camiões para cima dela, dizendo que não toleravam ter uma mulher à frente, dizendo-me "Como é que tu trabalhas com uma mulher? Isto descredibiliza o desporto". Com o tempo acabaram por aceitá-la.

Elisabete: Uma vez em Marrocos um jornalista em vez de vir falar comigo, foi fazer uma entrevista ao meu marido e perguntou-lhe com as letras todas se ele não achava que o facto de um mulher ganhar a categoria dos camiões não desvalorizava a modalidade. Nesta pergunta ele disse tudo aquilo que as pessoas pensam.

No caso de Portugal, é sexismo ou é contra si, por não gostarem da Elisabete?

Contra mim não acho que seja. Tem a ver com a nossa cultura e a forma como nos vemos. Os portugueses não valorizam a prata da casa. A não ser que eu fosse viver para fora e fizesse um grande brilharete lá fora, aí as pessoas já falavam em mim. O problema em Portugal também é que não se valoriza o desporto. Só interessa futebol. E vivemos numa sociedade onde se educa as mulheres de uma determinada maneira e os homens de outra. Quando há uma mulher que sai dentro daquela esfera que foi concebida para ela, as pessoas reagem mal. Este é um desporto de homens, é um desporto difícil porque só os homens o fazem, então se aparecem mulheres é porque isto já não é tão difícil e os homens sentem-se desvalorizados. Então ela está aqui a mais, não pode estar. Se conseguiu um bom resultado, é porque só havia dois camiões, se foi 10.ª na geral dos carros, é porque não havia equipas boas. É assim que as pessoas põem as coisas na mesa.

Qual foi o pior que lhe aconteceu ou que lhe disseram sob este ponto de vista da discriminação?

Não sei dizer, mas sou capaz de apontar situações em que me senti injustiçada. Quando vamos para as provas, naquele sentido de rentabilizar o patrocínio, pagamos imagens às organizações para distribuir pelas televisões, numa perspetiva de que se eu tiver um bom resultado as televisões poderem pôr imagens minhas. Faço isto já há imenso tempo e na maior parte das vezes é dinheiro deitado à rua porque ninguém ou poucas estações põe essas imagens. Sempre justifiquei isso pelo facto de não ter bons resultados. Vai daí um dia fiz um figurão quando ganhei o rali de Marrocos. Tinha lá uma série de camiões bons, protótipos, e consegui ficar à frente deles. Fiquei toda contente e de facto as televisões de uma maneira geral fizeram uma peçazinha e foram passando. Mas havia uma estação especifica, portuguesa, que nunca punha nada meu. Até podia dizer que eu fiquei no lugar tal, mas o meu camião nunca aparecia. Achei tão estranho que pedi à nossa assessora para contatar a estação e perguntar se eventualmente não tinham recebido as imagens. E a justificação foi: “Têm de compreender, a Elisabete tem muito mérito, mas não lhe podemos dar destaque na televisão porque ela é única. Ela pode ter ganho, mas é a única, porque é que a vamos pôr?". Vá lá que a partir daí aquele programa passou a pôr imagens minhas. Isto é apenas um exemplo de um obstáculo invisível, mas que está lá.

Essa discriminação foi gasolina para o seu motor?

Não tenha dúvida que foi. O primeiro Dakar que fiz, correu muito mal, desisti, vim para casa com um grande sentimento de frustração. Às tantas começo a ver em casa os recortes de jornais e encontro em que um jornalista escreveu uma coisa deste género: "Já vi muitas mulheres terminarem o Dakar mas francamente tinham corpos de homem. Dou os parabéns à Elisabete, mas não acredito que esta menina de aspeto frágil aguente mais de uma semana". Escreveu isto, com uma grande fotografia minha ao lado da mota, a fazer pose. Felizmente, vi isto só depois de ter desistido, mas com aquele recorte percebi que as pessoas não acreditavam em mim. A partir nasce a minha luta para provar que era capaz. Foi uma espécie de obsessão, até para provar que não estava a enganar as pessoas quando lhes batia à porta a pedir dinheiro ou apoio para fazer fosse o que fosse. Agora, já é pelo gozo puro.

Pode dizer-se que o todo-o-terreno e a competição trouxe o picante que faltava à sua vida?

O todo-o-terreno foi um desafio muito grande porque eu era uma miúda insegura, muito incapaz, com muitos medos, muito frágil, daquelas que ficam num cantinho a ver se ninguém dá por elas. Quando comecei a andar de mota comecei a perceber que os medos afinal estavam só na minha cabeça e que conseguia ultrapassá-los com muita facilidade. Comecei a perceber que podia ser muito melhor do que aquilo que à partida pensava que era. Iniciei com a mota uma luta contra mim própria e fui vencendo. Quando consegui terminar o meu primeiro Dakar de mota achei, sinceramente, que podia fazer na vida tudo o que eu quisesse, porque exigiu de mim um sacrifício e um sofrimento enormes.

O camião é mais difícil do que a mota?

O camião é mais difícil em termos psicológicos. Em termos físicos, o camião é duro, mas posso comer quando quero, não passo frio, não tenho de levantá-lo como tinha que levantar a mota que pesa 300kg do chão. Agora, em termos psicológicos o camião é um veículo extremamente difícil porque todos os problemas com o camião são muito grandes.

Pode explicar melhor?

Um piloto de camião não faz nada se não tiver a certeza de que vai sair bem. De mota podia olhar para um duna e pensar não sei se chego lá acima, mas experimentava, chegava a meio da duna, não tinha motor para ir lá acima, dava meia volta vinha para baixo, se caísse levantava-me, nódoa negra nas pernas ninguém via, chegava ao acampamento dizia “caí três vezes” e tinha caído 30, ninguém sabia. Com um camião não posso fazer isso. Se tentar subir a duna e o camião virar, vai ser um problema dos diabos. Preciso quantos camiões para pôr o meu camião em pé? Tenho que assumir que fiz asneira, vou ter de desistir da corrida, é o camião partido, etc. Depois há outros aspetos. As organizações abrem os percursos de carro, as motas passam perfeitamente, nós chegamos lá e o camião não passa. Mas temos de passar porque a corrida é ali. Para além de que não estamos sozinhos, temos mais duas pessoas ao lado, o que torna as coisas mais complicadas ainda (risos).

Porquê?

Porque as pessoas são muito difíceis. E no deserto as pessoas revelam-se. Estão fora do seu meio, do seu bem estar, cansados.

Tem muitas discussões?

Não, é raro. Mas foi difícil pôr as pessoas todas sintonizadas a trabalhar para um objetivo, que também é das pessoas, mas acima de tudo é meu. Cada pessoa tem as suas ambições, os seus macacos no sótão e de vez em quando eles saltam cá para fora. Sintonizar as pessoas todas num projeto em que é uma mulher que lidera, foi complicado. O meu problema é que eu achava que éramos todos amigos, inteligentes e pessoas de bom senso, por isso as coisas funcionavam por si. Depois percebi que não, que tinha que haver uma liderança e tinha que me assumir como líder. Só quando consegui fazer isso é que a equipa começou a funcionar bem. Hoje tenho de estar ao volante do camião e quando salta a tampa a alguém ao meu lado, porque está cansado e não está a saber lidar com o stress, eu tenho de manter a minha calma para o conseguir acalmar e gerir a situação de forma as coisas não descambar. Evoluí muito como pessoa para chegar a esse ponto. Foi uma das coisas que me deu gozo nesta corrida, sentir que havia um fervilhar no banco do lado, que já não estava sob controle, e isso não me transtornar.

Sente-se menos feminina quando está em competição?

Não, de maneira nenhuma. As pessoas acham que uma mulher que faz um desporto que geralmente é feito por homens, é mulher-homem ou age como uma homem. Não. A minha parte feminina é que me deu tudo isto bom que consegui fazer. É um desporto masculino porque são os homens que o fazem, mas eu venci por ser mulher. Deu-me ferramentas muito boas para estar onde estou. Uma dessas ferramentas é o saber lidar com os meus parceiros do lado sem conflito. Um dia um fulano percebeu que eu estava à nora com a minha equipa e a meio da noite sobe a escada do camião, vem conversar comigo e diz: "Eu ontem parei o camião no meio do deserto, desci, fui ao outro lado e espetei um murro no navegador e a partir daí os problemas acabaram" (risos). Eu não preciso disso, não preciso chegar a esse nível. As mulheres têm muitas qualidades boas e uma delas é a capacidade defensiva.

Como assim?

As mulheres defendem-se e protegem-se muito mais do que os homens. Eu tive situações incríveis dentro do camião. Cheguei a andar 100, 200 km para ultrapassar o camião que vai à minha frente. Ele olhava para o espelho, via que era eu e não me deixava passar. De vez em quando surgiam oportunidades e eu tinha os dois aos saltos, ao meu lado, a dizer: "É agora, é agora, ultrapassa". Eu olhava para o terreno e dizia: "Não, não é agora. Isto é demasiado arriscado". E voltava para a traseira do outro, fazia mais uns quilómetros no pó. Essa capacidade defensiva, fez com que eu tenha tido menos acidentes e menos situações em que pusesse em risco a minha integridade física e a dos meus parceiros. Enquanto piloto de moto, por exemplo, eu conseguia estar horas e horas concentrada na navegação e tinha pilotos que eram muito mais rápidos do que eu, que me passavam duas, três vezes, mas depois eu acaba primeiro do que eles, porque era muito concentrada na navegação e não me perdia. As mulheres sabem gerir as coisas com um bom senso, diferente do dos homens. Nós conseguimos fazer um trabalho de fundo, mais sólido que pode demorar mais tempo, mas que nos permite chegar aonde queremos chegar. Em muitas circunstâncias percebi que era o meu jeito feminino que dava a volta às situações e que fazia com que ganhasse com isso.

Estar tantas horas e dias num camião, no deserto, torna algumas necessidades difíceis de satisfazer. Como fazia quando precisava de ir à casa de banho, por exemplo?

Quando vem alguém novo para o camião uma das primeiras coisas que ensino é nada de beber água de enfiada, é um golinho de cada vez, espaçado. É claro que há sempre um momento em que: "Eh pá, pára aí que não aguento mais" e tinha de parar. No meu caso, como transpiro muito, vou bebendo muita água ao longo do rali todo, mas tenho sempre a preocupação de parar o camião antes do início da etapa e ir à procura de um arbusto. Se não houver deixo-os lá, pego no camião e vou para longe para ir atrás da roda despejar a bexiga. Depois consigo estar seis ou sete horas, o que for, com a bexiga cheia quase a rebentar mas não paro por isso. No acampamento é claro que temos situações muito difíceis, até porque as mulheres têm mais qualquer coisa do que os homens a nível de cuidados de higiene. Vivi situações que não vou falar nelas, mas que são do arco da velha, de ficar a pensar: "Agora como é que me desenrasco?". Mas temos de nos desenrascar, temos de fazer e faz-se. A nossa imaginação consegue fazer coisas fabulosas, arranjar soluções para tudo.

Dá para tomar banho no acampamento?

Dá, se bem que, se chegamos às cinco ou seis da tarde ao acampamento em Marrocos nesta altura do ano, é impossível tomar banho de água fria ao ar livre. Às vezes quando vou às escolas digo aos miúdos que estou uma semana sem tomar banho, no dia de descanso tomo banho e depois estou mais uma semana sem tomar. Agora já não é tanto assim, mas há uns anos era, porque eu chegava muito tarde ao acampamento e era impensável despir-me para tomar banho na rua, porque a cabine é aberta em cima, e é muito frio.

Há algum cuidado, alguma coisa de que não abdique enquanto mulher mesmo estando em competição?

Não há nada material que eu diga, é mesmo muito importante para mim. Das coisas mais importantes que tenho na vida e de que não abdico é da minha relação com o Jorge. Se o Jorge me dissesse: "já não quero mais corridas, isto acaba hoje", eu acabo hoje, porque ele para mim é mais importante que tudo. Mas em termos de coisas materiais, lembro-me que no primeiro Dakar que fiz, tínhamos muito pouco espaço, só uma mala para levar peças, então cremes e essas coisas não levei nada. Quando cheguei cá a minha mãe disse-me logo: "Ah filha, tu envelheceste tanto" (risos). Eu tinha a pele toda enrugada, toda desidratada. A partir daí, arranjei sempre maneira de levar os meus cremezinhos. Mas se me dissessem até disso tens de prescindir, eu prescindia. Há objetivos que são muito mais importantes e grandiosos. Tudo aquilo que conquistei com a competição foi muito mais importante que aquilo que as nossas mães nos ensinaram que era importante para nós mulheres, saltos altos, cabelo bem penteadinho, maquilhagem, soutien de chumaços para fazer aquele perfil que interessa... Cheguei à conclusão que a competição me deu coisas muito mais fabulosas do que isso.

Alguma vez deu ou dá nomes aos seus veículos?

Nunca dei. Mas o camião anterior tinha um nome dado pelo mecânico, por ser pequenino e simpático. Era a princesa. Mas foi o único.

O que é que África tem de tão especial para si?

Os seres humanos sentem-se muito bem no meio do verde, da vegetação e quando vamos para o deserto encontramos uma paisagem árida onde percebemos perfeitamente que estamos a mais. Aquele não é o nosso espaço. Quando o sol começa a aquecer temos noção da nossa fragilidade e percebemos que ali duramos muito pouco tempo. Acabamos por nos sentir pequeninos e insignificantes. Este sentimento de pequenez faz com que ganhemos uma força espetacular. O espírito de sobrevivência é fabuloso, conseguimos coisas magníficas no meio do deserto. Costumo dizer que resolvi problemas no meio do deserto que à porta de casa com todos os meios não conseguiria resolver. O instinto de sobrevivência dá-nos uma força e uma capacidade enormes e esse é que é o verdadeiro encanto do deserto, na minha perspetiva. O quanto mexe connosco e nos dá capacidade de descobrir capacidades e força que pensávamos que não tínhamos.

Qual foi o momento em que se sentiu mais pequenina no meio do deserto?

Tive vários. Num rali recente virei o camião, ficamos duas noites e praticamente três dias à espera que nos fossem buscar e num dos dias estávamos sozinhos, sem condições nenhumas. O sol começou a subir no horizonte, a temperatura começou a subir, olhávamos à volta e não tínhamos uma sombra, nem do camião, para nos abrigarmos. Aí percebi que de facto precisávamos de uma golpada de sorte para conseguirmos resistir, porque se passasse muito mais tempo naquelas condições... .

Sentiu medo?

Nunca tive medo. Acho que é o tal instinto de sobrevivência e de defesa. Todas as situações onde me senti mais frágil, onde sentir medo seria normal, nunca o senti, pelo contrário, achei sempre que era uma super-mulher e dei por mim a mandar nos homens todos, a geri-los todos e a encontrar soluções para os problemas. Em muitas situações senti que eles fraquejavam mais do que eu.

Nunca chorou?

Chorei muitas vezes. Se calhar não minto se dizer que chorei nas corridas todas. Mas não por essas situações, é mais por emoções próprias, às vezes por sentimento de frustração e aí tive os meus momentos em que tive de desabafar, normalmente sozinha, sem que ninguém visse.

Faz alguma coisa durante as provas para relaxar?

Aprendi recentemente a respirar. A respirar fundo. Às vezes ouvir uma música calma ajuda imenso. Sou fã da Lana del Rey, algumas músicas do Mike Oldfield, não todas, aquelas músicas que são mais suaves e tranquilizadoras.

Alguma vez sentiu necessidade de telefonar a alguém?

Não telefonar, mas tinha um truque que era escrever. Quando as coisas correm mal e eu acordo de noite, não consigo dormir, dou voltas e voltas no saco cama, muitas vezes pego no meu bloco e caneta e começo a escrever, a escrever, a escrever. Parece que esse desabafo alivia o stress, alivia a tensão, a certa altura fecho o bloco e durmo o resto da noite toda.

Lançou esta semana mais um livro com o fotógrafo Jorge Cunha.

Sim, só que desta vez resolvemos colocar à venda, sendo que o dinheiro reverte para uma associação, a Humanidades, que é pouco conhecida e que dá apoio a mulheres grávidas ou mães em situações de risco. A associação acolhe-as e ajuda-as a encontrar um rumo para a vida. Neste livro fiz alguns textos pequeninos só para fazer o enquadramento das fotos, mas é acima de tudo um livro de fotografia do Jorge Cunha.

O tema maternidade está perfeitamente resolvido na sua vida?

Sim. Ainda não fechámos a porta completamente a uma adopção, se bem que os anos passam e nós mulheres somos bonecos mandados das hormonas. Houve uma fase da minha vida em que ter filhos era o meu maior objetivo, o desporto veio sobrepor-se e interferir nesse projeto. Fui adiando e um dia achei que de facto se não os tivesse, a adoção era uma hipótese.

Não está arrependida dessa opção?

Não. E acho que o Jorge também não. Foi uma opção que fizemos de uma forma consciente. Se tivesse sido mãe se calhar teria sido uma boa mãe mas desta forma também tive o meu papel na sociedade.

Pensa voltar a dar aulas de geografia?

Penso. Todos os anos peço dispensa de serviço para garantir o lugar na escola para o caso de um dia ter de voltar. Fui professora por opção, porque gosto de ensinar. Mas ainda não sei o que vou fazer quando deixar o desporto.

Vai continuar a escrever livros?

Sim, isso sim. E agora tenho uma proposta de fazer mais uma banda desenhada. Vamos ver. A escrita é um complemento do meu dia a dia.

Vê-se a competir até quando? Tem um meta?

A minha meta era esta: ter o reconhecimento de ser um bom piloto. Era aqui que eu queria chegar. Agora, até quando? Não sei dizer. Temos o desporto muito conotado com jovens, mas está mais do que provado de que isso não é verdade. A minha modalidade não é recomendada nem para jovens nem para cardíacos, tem que se ter alguma maturidade. E cada ano que passa sinto que faço melhor, por isso....Mas naturalmente chegará o dia em que digo estou satisfeita não quero mais.

O corpo não se ressente?

Acabo sempre muito cansada naturalmente, mas com a mota ganhei uma musculatura fabulosa que tenho mantido e ampliado. Este ano fiz um voo grande com uma má aterragem, o volante disparou, levei uma chicotada num dedo e a articulação dói-me imenso e há um tendão do ombro que também me dói, mas... (risos).

Treina diariamente?

Duas horas todos os dias no ginásio.

Tem algum hóbi?

O mergulho e agora descobrimos as caminhadas. Este verão fizemos desde Porto Covo ao cabo de S. Vicente a pé.

Porque é que continua a haver tão poucas mulheres nesta modalidade?

As mulheres auto excluem-se. E para as mulheres é tudo muito mais difícil. Consegui fazer isto durante estes anos todos porque tive as costas quentes do Jorge, que esteve sempre ao meu lado. Mas o primeiro passo é a pessoa questionar-se: "O que me impede de fazer?". E tem de ir à luta, acreditar seriamente para conseguir eliminar todas as barreiras porque são muitas.

Sente falta de interesse e de apoio por parte do Estado para com este desporto e para consigo?

Devolvo a pergunta. Se não fosse a Medinfar a dar-me o dinheiro ao longo destes anos, acha que estávamos aqui à conversa? Não tenho um tostão do Estado. É uma empresa privada que me patrocina, a troco de publicidade.

Recebeu os parabéns de alguém do Estado?

Recebi um email da Secretaria de Estado para a Igualdade e Cidadania. E fomos recebidos pelo embaixador português em Dakar, logo a seguir à chegada. Foi só.

Quais as vantagens e desvantagens da moto e do camião?

O pior da mota é a exigência física e a solidão. Uma das coisas que mais mexeu comigo no meu primeiro Dakar de moto foi a solidão. Ai senti o quanto demolidor é este sentimento. É um sentimento que mata, as pessoas não têm noção disso. O que é melhor, se calhar a liberdade de opção que temos, com a moto podemos fazer tudo o que quisermos, pode ir para onde quiser, passa por todos os sítios, somos autónomos, não temos de dar cavaco a ninguém. No camião, um dos aspetos negativos é o fato de ser um veículo que do ponto de vista técnico é muito difícil, porque temos de lidar com muitos fatores que normalmente as pessoas não contam, a largura, a altura e o peso do camião, mais o grande ângulo morto, perto do camião não conseguimos ver nada, a caixa de velocidades que é extremamente difícil e o facto de as pessoas que preparam as provas não conduzirem camião - não percebem as suas necessidades. Depois, o camião foi feito para andar devagar e quero andar com ele depressa e torná-lo um veículo muito ligeiro.

Qual a velocidade máxima a que já andou?

Pelos regulamentos estamos limitados aos 150km/h e já andei muitas horas a essa velocidade. Mas ele dá 170, 180Km/h.

Qual a parte boa do camião?

O quanto alimenta o nosso ego. Porque por ser tão difícil, temos aquela convicção de que somos os melhores (risos). Somos confrontados com tantos problemas e somos capazes de os resolver enquanto os dos carros, pedem ajuda.


FONTE: TribunaExpresso