O exasperado Bruno Fernandes (por Bruno Vieira Amaral)

Bruno Vieira Amaral fala-nos sobre outro Bruno, o Fernandes, cujo talento imenso tem traços de genialidade, mas não é um santo. E que quando desce para pegar na bola quase desde a sua grande área fá-lo com a exasperação evidente de quem lamenta que o futebol não seja um desporto individual

No Arregaça, campo mítico da minha infância, onde raramente se jogou por um troféu e onde o público era composto, quase sempre, pela equipa que aguardava vez no roda-bota-fora, as desavenças não eram raras. Um passe mal feito podia suspender uma amizade, reatada poucos minutos depois, é certo, mas com a cicatriz desse erro a perdurar entre os amigos. O mesmo valia para os golos falhados de baliza aberta ou as decisões, motivadas pelo saudável egoísmo da fome infantil de glória, de se chutar à baliza quando tínhamos um companheiro mais bem posicionado.

O pior, sabe bem quem alguma vez jogou à baliza, era o frango. O frango tinha essa particularidade cruel: raramente motivava censuras em voz alta (arriscava-se sempre ouvir a resposta “então vem tu à baliza!”). Os colegas de equipa limitavam-se a virar costas, abandonando o guarda-redes a negociações solitárias com o fantasma do seu falhanço. Nada simboliza melhor a solidão do guarda-redes do que a imagem recriminadora das costas dos colegas, cabisbaixos, pesadombros, após um golo sofrido.

Entre jogadores de campo, a conversa era outra. Acusações, zangas, amuos. Contra mim falo. Sempre protestei acima das minhas qualidades futebolísticas. O facto de não ser grande jogador nunca me coibiu de exigir o melhor dos outros. Talvez essa seja uma boa definição de mediocridade de espírito: exigir dos outros o que nós próprios não conseguimos dar. Prova disso é que os mais talentosos eram quase sempre os mais magnânimos, os que mais facilmente perdoavam as falhas e as limitações dos outros.

Naquele estádio do desenvolvimento humano, o talento puro é uma deficiência invertida, um dom que se começa a explorar sem se saber ao certo o que vai sair dali. É como se nos dessem uma arma carregada para as mãos e estivéssemos demasiado entretidos em explorá-la para repararmos nos outros. O dono de um talento natural sabe que está à parte, que o reino dele não é deste mundo, e aprende por instinto a ser tolerante com os que não têm o seu talento. Os verdadeiros génios são mais tolerantes com a estupidez do que os outros seres humanos. Daí que todos eles sejam candidatos à santidade.

Bruno Fernandes, cujo talento imenso tem traços de genialidade, não é um santo. Quando desce para pegar na bola quase desde a sua grande área fá-lo com a exasperação evidente de quem lamenta que o futebol não seja um desporto individual. Percebe-se que a vontade era a de levar a bola, avançar em triângulos em que todos os vértices fossem ocupados por ele, desmarcar-se a si mesmo e finalizar com um daqueles remates de desesperada lucidez que são a sua assinatura infalsificável.

Ele domina o jogo, não com desinteresse, mas com um certo grau de desilusão, como um profeta ao fim de anos estéreis de missão apostólica em terra de infiéis. Contra o Moreirense fez um passe açucarado para um colega – aquilo a que os espanhóis chamam uma cuchara, como se o pé fosse a colher e a bola, compota – e a jogada morreu pouco depois, sem história. Talvez por essa razão os seus festejos tenham mais de exorcismo do que de alegria. Por exemplo, no golo que marcou contra o Feirense, para a Taça de Portugal, a reação não foi a de quem acabou de marcar um extraordinário golo, todo ele espontaneidade, mas a de um professor de música que, ao fim de cem repetições, lá consegue que o aluno acerte na nota. Então damo-nos conta de que o remate espontâneo resultou de um cálculo mental apurado e que, na cabeça de Bruno Fernandes, o desfecho não podia ser outro, como se perguntasse a colegas e adeptos eufóricos nos festejos: “mas estavam à espera que a bola fosse para onde?” Com jogadores destes, milagre é a bola não entrar.

De alguns destes jogadores diz-se que têm uma relação de amor com a bola. A relação de Bruno Fernandes com a bola é de amor, sim, mas temperada com uma tensão permanente, por razões alheias à vontade de ambos, como quando se ama uma mulher que traz com ela uma família detestável. A cada jogada, Bruno Fernandes parece perguntar-se “porque é que não podemos ser só nós os dois? Porque é que temos de levar com árbitros e adversários, colegas e claques?”

Ao contrário dos génios imberbes do Arregaça, Bruno Fernandes não demonstra muita paciência para a inépcia e a sua cara revela sempre mais do que esconde (deve ser um terrível jogador de poker). Daí que o acesso à santidade, mesmo à peculiar santidade futebolística, lhe esteja vedado. Por outro lado, é essa transparência que o torna um ídolo profano e acessível, um ídolo de defeitos perdoáveis – a indisfarçável irritação com a incompetência – e de qualidades inatingíveis – a raiva controlada dos seus remates, a penetrante delicadeza dos seus passes. Um ídolo à medida dos nossos pecados e das nossas aspirações.


FONTE: TribunaExpresso