Fábio viveu na rua, foi pedreiro e jogador de futebol. Hoje tem ELA, come por uma sonda, escreve com os pés e treina o Barça de Poá

Domingo é dia de futebol e Barcelona. O campo precisa de estar marcado, com a cadeira posta sempre no mesmo sítio do relvado para as primeiras considerações do treinador. Fábio Correia de Melo, ex-jogador e portador de uma doença neurológica degenerativa, progressiva e rara, a esclerose lateral amiotrófica (ELA), é também o presidente da equipa.

Muito distante do Campo Nou, em Espanha, um grupo de amigos realiza um ritual que já virou tradição no bairro do Jardim Debora, em Poá, município do interior de São Paulo, no Brasil. É o Barcelona de Poá, um clube fundado há 13 anos por Fábio e outros aficionados do Barça da Catalunha. Um elenco criado para reunir rapazes aos fins de semana para fazerem o que mais gostam: jogar à bola. Juntos, formaram uma grande família.

“O Barcelona de Poá surgiu ao ver o Barcelona da Espanha reunir grandes jogadores com toque refinado, Ronaldinho, Xavi, Iniesta, Etoó, Belletti, Puyol, Deco, Messi... Eles me deram inspiração para montar o Barça de Poá. Reunir alguns amigos e montámos o time que logo ficou conhecido na região por jogar bonito. Eu jogava no meio campo, usava a camisola 8 e era o capitão. Como jogador, ganhei muitos títulos com o Barça e jogava sempre com garra e inteligência. Agora, como técnico e presidente, sinto-me como se estivesse lá dentro das quatro linhas. É um prazer encontrar a rapaziada aos domingos de manhã verdadeiramente. Somos mais que um clube, somos uma família”, relatou Fábio.

O seu maior ídolo nos campos é Lionel Messi, mas admira muitos outros jogadores, como Cristiano Ronaldo, Figo, Deco, Ronaldinho Gaúcho, Ronaldo Fenómeno, Iniesta, Xávi, Puyol, Zidane Piqué, Philippe Coutinho e Rakitic. Neste ano, no entanto, considerou CR7 como o melhor da temporada.

Um dia, ele espera conhecer o Camp Nou, um sonho antigo, e tirar uma foto com Messi. Segundo ele, o argentino é o mais completo da actualidade. Um projecto que pretende realizar um dia.

Enquanto isso não acontece, concentra as suas forças no Barcelona dos trópicos.

“Ir ao campo é o único dia em que eu saio de casa, então, para mim, é muito importante ver pessoas na rua, sentir o vento e dar um ‘rolézinho’ mesmo que seja por algumas horas. Sair de casa é muito trabalhoso e cansativo para mim e para a minha esposa, que toma conta de mim sozinha. E eu sou um homem grande de 1,80m, é difícil para ela, que é mulher é baixinha (risos). Minha esposa é minha enfermeira particular, mesmo sem ser da área de saúde. Não dá para falar muito as palavras não define o que a Mixa representa na minha vida.”

Fábio, treinador e presidente, foi diagnosticado com a ELA em junho de 2011, mas já sentia alterações no corpo desde o ano anterior. Neste tipo de esclerose, os neurónios motores que levam a informação do cérebro aos músculos são afectados, o que gera uma paralisia progressiva dos movimentos do corpo.

A doença paralisou os braços e as mãos de Fábio, mas ele ainda mexe um pouco as pernas. Fala com dificuldade, não se alimenta mais por via oral, mas aprendeu a escrever com os pés. Apesar das limitações, Fábio nunca deixou o trabalho. Sem seguro de saúde, conta com a ajuda da Associação Pró-Cura da ELA, que lhe doou uma cadeira de rodas, um aparelho que o ajuda a respirar e outro para tirar as secreções dos pulmões.

A Infância
Desde cedo, Fábio aprendeu a lidar com dificuldades. É o quinto numa família de oito irmãos e começou a trabalhar aos 13 anos de idade. O pai era muito bruto, batia-lhes e ainda ficava com quase todo o dinheiro que recebia. Aos 16, saiu de casa. Viveu na rua, foi nómada e acumulou uma série de profissões.

Fez trabalho braçal de ajudante de pedreiro, pintor de alvenaria, ajudante geral e tornou-se também jogador de futebol. A mãe pediu-lhe para voltar a casa quando tinha 22 anos, mas Fábio recusou a proposta; concordou viver num terreno abandonado ao lado de onde os pais moravam.

Ali, construiu um barraca de madeira e, aos poucos, foi montando o seu espaço. Entrou para a igreja evangélica e em grupos de oração e música, e viu a vida mudar. Anos depois, entrou num concurso e foi aprovado para a função de guarda municipal.

“Fui ajudado por pessoas que não eram da minha família, então, sempre tive que lutar pela minha vida e agora não é diferente. Hoje eu tenho minha própria família, eu, minha esposa e Deus que vai me dando força para lutar e comandar o Barça de Poá. Morei na rua por oito anos, na casa de um e de outro. Às vezes, ficava sem comer e sem tomar banho, mas muitas pessoas boas me deixavam ficar, comer e tomar banho. Meus técnicos de futebol me ajudaram muito. Eu tocava cavaquinho e dava aulas a alguns alunos em particular. Ia até a residência de cada um e dava as aulas e recebia uns trocos e também fazia qualquer tipo de serviço braçal para ganhar algum dinheiro. Não cheguei a pedir nada na rua, sempre corri atrás da sobrevivência”, lembrou o presidente do Barça de Poá.

Os Amigos
Laércio Soares acompanhou parte da história do presidente do Barcelona de Poá. Conheceram-se na infância e moravam no mesmo bairro. E continuam juntos.

“Jogávamos bola sempre juntos. Ele é uma pessoa muito especial para todos nós, é um paizão, um amigo, um irmão, dá conselhos, ajuda no possível, mesmo com o estado de saúde dele ele quer ajudar e fazer algo para todos nós jogadores. Ele é um guerreiro, uma pessoa que não tem explicação. O coração dele é muito grande para todos aqui do Barcelona, e é uma honra jogar no Barcelona. Eu trabalho em outras actividades, mas se eu não estiver ali no domingo eu não me sinto bem. O tempo que estou com ele e com os outros jogadores”, afirmou Laércio, que, além de jogador, trabalha na montagem de estruturas metálicas de palcos e outras coberturas para eventos.

Alessandro Garcia conheceu-o em 1992 quando mudou-se para Poá no mesmo campo onde a equipa joga hoje. Na altura, Fábio actuava como meia direita num clube de um bairro vizinho e havia recuperado recentemente de uma leão no joelho. Com o tempo, construíram uma amizade que dura há 26 anos. Desde os tempos em que o treinador ainda tocava samba, antes de entrar para a igreja e formar um grupo de música gospel: "Sem preguiça para Jesus".

“O Fábio jogava bem, tinha uma personalidade muito forte, atraía amigos, tinha e tem até hoje um espírito de competitividade muito forte. Ele odeia perder até par ou ímpar. Nessa mesma época, ele virou evangélico. Gostava de tocar samba e conforme entrou na igreja formou um grupo gospel. E como toda brincadeira... Todo o jogo tinha regra. E ele mandava. O espírito de liderança é muito forte”, contou Alessandro.

O amigo de longa data lembrou ainda as causas sociais nas quais Fábio esteve presente. Analista fiscal e empreendedor no sector de vendas, ele conta que o treinador foi responsável por tirar muitas crianças e adolescentes das ruas, afastando-os das drogas e do mal caminho.

“Ele tinha um trabalho social anteriormente do Barcelona de escolinha de futebol para garotos. Com a mesma disciplina de sempre e os garotos chamavam-lhe professor. Tinha uma preparação física de um atleta profissional. Disputava três, quatro partidas por domingo em alto nível com a mesma garra e o mesmo espírito de vencer sempre. Isso que o faz ultrapassar essas barreiras dessa doença que o habita hoje. Quando ele foi diagnosticado com a doença, foi um baque, mas o que lhe mantém em pé é a teimosia, a vontade de vencer sempre e o espírito de liderança que ele exerce aos que o cercam”.

Quem está sempre ao lado do treinador é a mulher é Michelle Cosmo da Silva Melo. O casal conheceu-se na igreja em 2000. Ali, começaram uma grande amizade, que transformou-se em amor anos depois, a seguir a uma noite de confidências e lágrimas, que culminou num abraço forte e no primeiro beijo.

Na altura, o ex-jogador demorou a assumir o compromisso; dizia que não tinha dinheiro para comprar uma cola ou sequer um gelado. Hoje, estão casados há oito anos, ou melhor, namoram há oito anos, como eles mesmo gostam de dizer. “Mixa” é como uma extensão do corpo de Fábio, os seus braços, as suas pernas, a sua voz.

“Deus é que me move. O Fábio é muito inteligente tem muita força e não desiste de viver. Um homem justo e verdadeiro. Ele tem muita fé e isso me inspira muito. O mais difícil é ter que ser as mãos os pés e muitas das vezes a voz dele. Eu era muito dependente do Fábio. Eu sempre falo para ele que ele é minha cabeça e o meu cérebro, já que sou os braços e as pernas dele. É muito difícil depender de outras pessoas para nos ajudar. No começo, eu sofri muito, mas o Fábio sempre falava: ‘Não espera nada de ninguém. Se você consegue fazer, vai e faz’. Tudo no começo foi difícil, mas Deus foi colocando pessoas com muito amor para nos ajudar a me orientar”, explicou Michelle.

“Em Poá e nas regiões aqui por perto as pessoas ainda não conhecem a doença. É tudo muito novo para alguns médicos e muitas das vezes tenho que explicar a doença”, acrescentou.

Grito de guerra
Pode não haver dinheiro para uma cola ou um gelado, mas os dois decidiam lutar juntos. Um conceito que está na raiz do Barcelona de Poá. Prova disso é o grito da claque da equipa paulista. O hino, como era de esperar, foi escrito pelo cérebro do grupo.

"Esse time foi formado através da amizade. Mas para ficarmos juntos, temos que praticar a humildade. Eu preciso do meu companheiro e ele depende de mim. Quando um cai, um levanta. Também quero que faça por mim. Não gostamos de perder, queremos sempre ganhar. Mas quando a derrota chega, temos que aceitar. Um por todos, todos por um. Barcelona!"


FONTE: TirbunaExpresso