Deita todo o ar fora e agora que estás à rasca, nada
Nadar uma piscina de 25 metros debaixo de água, para depois repetir, mas sem oxigénio nos pulmões, foi apenas um dos exercícios no treino de apneia para surfistas de ondas gigantes, como Nicolau Von Rupp (e não só), que realizámos no Clube de Natação da Amadora. O objetivo era e é sempre "ficar confortável numa situação desconfortável", quando o ar é escasso, o corpo arde e o que ele nos diz é insuportável. É aí que começa o verdadeiro treino...
Os ouvidos estão submersos, pairam na água como o resto do corpo, mas à tona, a boiarem sem ordens escutarem. Aguardam enquanto os pulmões guardam o ar, enquanto a mente se entretém com uma ideia:
O que seria estar dentro do processo de centrifugação do mar, que é o momento mais salgado e agreste da natureza, apanhado por uma onda gigante da Nazaré que acabou de quebrar e se enrola, furiosa com a sua espuma branca, em minicorrentes e contracorrentes abaixo da superfície, cujas únicas finalidades macabras, até se acalmarem, são impedirem que o nariz e a boca cheguem fora de água, onde o instinto sabe que está o ar respirável.
É uma ideia pavorosa que demora cerca de 20 segundos a ser lida.
É o tempo que se tem de esperar, imóvel e a flutuar, na ponta da piscina do Clube de Natação da Amadora, até se ouvir um tubo de metal a bater em outro e o som, estridente, se propagar pela água. Logo a seguir, é preciso submergir e nadar os 25 metros até à outra ponta - apenas com o oxigénio que há nos pulmões, sem uma única golfada de ar.
Nadamos com a sincronia de bruços, os braços e as pernas a cortarem a água, quase toda a gente a tocar na parede oposta da piscina, emergindo de cara ofegante, angustiada e sôfrega, porque não há beleza num corpo com falta de ar. O que há é a fealdade de vir ao de cima, ter 10 segundos para respirar e ouvir a contagem decrescente de João Pedro Parisot, que manda inspirar fundo, expirar todo o ar que foi inalado - e nadar novamente.
Uma vez em crawl e outra debaixo de água. É o último exercício de quase hora e meia feita para apressar o corpo num exercício de natação e, sobretudo, de sobrevivência, que se quer calmo, controlado e a esticar os limites de cada uma das 21 pessoas que estão a nadar. Cada uma, provavelmente, a sentir o estranho que é sentir o corpo a arder por dentro por baixo de água, o diafragma em chamas, urgentemente a precisar de oxigénio, não o poder ir buscar e ainda ter que se mexer.
Nicolau Von Rupp não tem “prazer nenhum a fazer isto, nenhum”.
Di-lo já com roupa, os pés calçados e com o cabelo húmido tapado por um gorro. Despiu o fato de surf e livrou-se da toca e dos óculos, coisas com que tenta vir ao Clube de Natação da Amadora, no mínimo, duas vezes por semana. Sentado na bancada, de perna cruzada, diz calmamente que “estes treinos são sempre puxados, pelo menos ao início, até a tua caixa abrir”, como é suposto. Porque deles se lembrará quando estiver nas situações que lhe são mais habituais.
Nicolau tem 28 anos e é um surfista mais virado para as ondas grandes. Ou gigantes, para o comum cidadão. Ele está, portanto, inclinado para a brutalidade do mar, impiedoso e desaconselhado por qualquer mãe. Ondas com o tamanho de prédios que almas corajosas e com uma pitada de imprudência querem apanhar, e apanham. É espetacular de se ver, mas um risco de vida se o que virmos for a onda a revoltar-se.
Quando Nic, como a maioria das pessoas o trata, ou alguém cai, é apanhado pela espuma ou se desequilibra no momento de pôr os pés em cima da prancha, sabe que será engolido por uma onda que o mastigará, enrolando-o nos seus dentes, inutilizando-lhe os pulmões e privando-o da calma necessária para aguentar “os 20 ou 30 segundos depois de ela te expulsar o ar todo”.
Ele sente que as pancadas e sustos apanhados lhe deram “um espírito animal de sobrevivência”, ativado em situações extremas. “Desligo tudo e entro em piloto automático”, resume. Mas, quando está em stress e, ainda, consciente de como deve agir enquanto está a ser enrolado pelo mar, lembra-se “de manter a calma”. E de que está preparado por já ter passado “muito tempo submerso” no mar e na piscina.
– Aguentas muito mais do que achas
É uma verdade mascarada de mentira durante muito do tempo e Nicolau sabe-o, tão ciente quanto os restantes que ali estão, à hora de almoço desta quinta-feira. Equipam-se com calções ou fato de neoprene, todos se trocam de vestes na bancada e molham-se no chuveiro antes de ouvirem as ordens de João Pedro Parisot, o instrutor.
Imponente pela altura e a envergadura de costas, é enérgico a explicar na voz rouca o como e o porquê de cada exercício.
O primeiro começa numa piscina com uns 12 metros de comprimento, cheia de água aquecida, pela cintura. Requer dez saltos dados com as mãos apoiadas no chão para, de seguida, nadar só com a força das pernas, sustendo a respiração. No fim, sai-se da diminuta piscina para se entrar na de 25 metros. Mergulha-se e é suposto nadar crawl ao comprido, caçando oxigénio a cada sete e, depois, em cada nove braçadas. A largura da piscina nada-se debaixo de água, em apneia.
Ouvem-se risos, trocam-se piadas, nota-se uma certa pressa em cumprir a missão e voltar ao início. “Nem sinto falta de ar”. Vêem-se sorrisos. Nicolau passa e pergunta se estamos bem.
Ainda há fôlego.
Que o segundo exercício começa a roubar, aos poucos. A exigência agora é na piscina pequena: caminhar curvado, com a cabeça submersa, guardando o ar até metade e libertá-lo, gradualmente, até ao fim onde, se pede para saltarmos o máximo número de vezes sem ceder à inspiração. Ignorando o instinto - e a dor, a sofreguidão, os membros ardentes, o desconfortável pânico que a mente ativa. E, na piscina grande, nadar 25 metros estilos respirando só a cada 11 braçadas. É quase o comprimento total da piscina.
Este par de exercícios, quase fundidos em um, duram cerca de 30 minutos.
E ‘Jójó’, assim apelidado por vários presentes, nos intervalos do cansaço, aconselha a respirar pausadamente. Sublinha a importância de termos calma, mostra a forma correta de inspirar e expirar, de “soltar bolhinhas” ao libertarmos o ar. “Não stressem”. Diz para relaxarmos quando a urgência é recuperar o fôlego.
Ele reforça a necessidade de acalmia, de não deixar a cabeça alertar o corpo e desperdiçar energia a espalhar aflição. “O treino a sério começa quando estás a ficar à rasca. No momento de aflição, estás a contrariar uma coisa. Quando inspiras e vais para debaixo de água, estás a encontrar a tua mente”, explica quem, aos 45 anos, há muito que aprendeu a viver em apneia - é selecionador nacional de hóquei aquático e surfista, também, de mamutes gigantes de água. Com estes treinos, organizados pela WaveCrushers, tenta ensinar a domar o instinto e aguentar quando ele manda respirar.
Somos um animal de hábitos que nunca soube o que é ter guelras que filtrassem a água. Podemos acostumar-nos a resistir ao pânico, aprender a tolerá-lo, sem ceder ao que é impossível de evitar, mas que não nos lembramos que é possível adiar. “A maior parte das pessoas que se afogam é por pânico, entram em pânico e gastam a energia que se deve guardar para sobreviver”, defende Nicolau Von Rupp, que sabe o que é tentar não afligir-se no mar.
O terceiro exercício é o mais sedutor nesse particular.
João Pedro tem os dois tubos de metal nas mãos. Bate-os uma vez e dá ordem de partida para que todos nadem, a ritmo lento, até ouvirem o segundo som - é o sinal de stop. Temos que ficar imóveis, a flutuar com o ar que temos nos pulmões, durante uns cinco, seis ou sete segundos. É a espera pelo segundo chocalho de metais, que significa arrancar de novo para um novo ciclo de braçadas, à máxima velocidade. Sem ir buscar oxigénio e, pior ainda, expelindo o que restava antes de voltarmos a nadar.
Nada-se até se aguentar. Quando o instrutor repara que todos já cederam e voltaram ao ritmo lento, aguarda um pouco e recomeça. É assim durante 10 minutos, nem metade do tempo aguento a respeitar a cadência. Saio da piscina. É rodeado por ar e não da água que me priva da sua forma respirável que se avistam as caras de sofrimento, as bocas abertas e as inspirações ofegantes de quem se aguenta na piscina.
O verdadeiro desafio é “conseguires estar confortável numa situação desconfortável”. João Pedro Parisot explica-o, no final, repetindo, por outras palavras, a ideia que repetira durante o treino, otimista de que entraria nos ouvidos tapados por tocas de quem mais preocupado estava em deixar entrar (e recuperar) ar.
Porque a piscina é um lugar onde o vir à tona é uma salvaguarda. Uma questão de escolha.
Não é o mar, sítio que faz do oxigénio um luxo e só depois um bem de primeira necessidade, cujo acesso vai ao sabor de ondas gigantes e da sua exclusiva vontade, condição que mantém afastada a grande maioria dos humanos. Depende do mar enrolado, de monstros de água a quebrarem sobre cabeças e muito mais coisas que podem correm mal, do que bem, que têm como consequência manter-nos 20, 30 ou 40 segundos debaixo de água.
Nicolau acaba a lembrar uma condição básica, tão basilar que nós, os que integramos alegre e felizmente a maioria que vê as ondas gigantes à distância dá por adquirida: “Não damos valor ao respirar e nestas situações é que um gajo realiza a sorte que temos em respirar quando quisermos”.
FONTE: TribunaExpresso