Viagem ao centro de um grupo de campeões (no futsal e na vida)
A taça de campeão brilha numa mesa ao lado da quadra. Um a um, os atletas vão entrando, prontos para o treino, sem se deixarem afetar pela presença de câmaras e de jornalistas. A atenção dos media é uma constante por esta altura e não é para menos, já que não é todos os dias que uma equipa se sagra campeã da Europa com as Quinas ao peito.
No Pavilhão Municipal de Gulpilhares, Vila Nova de Gaia, está tudo pronto para o treino da Seleção Portuguesa de Futsal para Atletas com Síndrome de Down, que a 15 de novembro venceu o Campeonato da Europa ao bater na final a Itália, anfitriã do torneio. Já passaram uns dias, mas o orgulho na conquista é ainda bastante evidente.
Embora a comunicação seja, por vezes, parca em palavras, é cheia em sorrisos. O sorriso de quem gosta de driblar um adversário, de chutar a bola e vê-la entrar na baliza, ou impedi-la de o fazer, o sorriso de quem olha com orgulho para a taça, conquistada depois de ultrapassar mais do que apenas o adversário em campo, mas um sem número de obstáculos que começaram logo no início da vida.
Na baliza, está Carlos André. Destemido nas saídas, defende uma, outra… com as mãos, com os pés… mas não consegue travá-las todas. Mesmo estando num treino, leva a sério a missão de garantir que a bola não entra. Do outro lado, os companheiros tentam o oposto: marcar. Uns conseguem, outros não, os treinadores vão dizendo palavras de incentivo e nota-se o afeto que transmitem aos jogadores.
«As pessoas com síndrome de Down são muito carinhosas, muito afetuosas, e para os motivarmos, o toque, o abraço, são essenciais. São muito disciplinados, cordiais, existe muito companheirismo e respeito na equipa, há muito fair play, e essa parte afetiva é decisiva», conta o selecionador Pedro Silva, que explica que «o treino funciona muito com a repetição, para eles perceberem depois aquilo que têm que fazer no jogo».
O que significa esta vitória? A resposta é dada pelo guarda-redes: «Confiança, acreditar». A confiança nas capacidades próprias e a confiança dos familiares nas capacidades deles.
«Depois de conquistarem o título de campeão europeu, são pessoas diferentes para melhor, acreditam mais nas suas capacidades e estão mais preparados para o desporto e para a vida», conta o selecionador Pedro Silva, que dá um exemplo: «Ricardo Pires [capitão da equipa] agora já tem cartão multibanco, a mãe já lhe deu essa liberdade. Com a evolução que vão tendo como atletas e como pessoas começam a ter mais autonomia para fazer certas coisas, para irem ao supermercado, comprarem umas sapatilhas…»
Pedro Silva está com a equipa desde janeiro de 2017, desde que a Associação Nacional de Desporto para a Deficiência Intelectual (ANDDI) criou esta seleção. Da equipa técnica fazem ainda parte Hélder Fonseca e Renato Frazão e foram eles os três que, através de um recrutamento a nível nacional, selecionaram os dez atletas que foram a Terni conquistar o título Europeu.
Tanto a equipa técnica como os jogadores estão a festejar, mas já de olhos postos noutro objetivo: «Mal acabámos de conquistar o europeu, já os jogadores só falavam no Mundial do Brasil, do próximo ano», explica Hélder Fonseca, que conta que os atletas estão «de peito feito com esta conquista». «Eles andam com as medalhas para todo o lado, a mostrar aos familiares, vizinhos, nas instituições».
A equipa é composta por atletas com idades entre os 23 e os 42 anos, de clubes e instituições de todo o país, com maior prevalência para a zona norte, «mas porque calhou no recrutamento. Se aparecerem nos treinos jogadores de outras zonas do país com capacidades, claro que serão bem recebidos», avisa o selecionador.
Vários destes jogadores praticavam e competiam noutras modalidades – natação, basquetebol, ténis de mesa, judo, canoagem, ciclismo… - , mas «faltava-lhes experiência em termos de desportos coletivos», conta Pedro Silva. «Foi isso que tentámos incutir. Alguns eram evoluídos tecnicamente, mas faltava o trabalhar em equipa».
O selecionador conta que «a maior dificuldade foi chegar às famílias». «Fazê-los acreditar que os filhos têm valor para representar a seleção nacional. Alguns não acreditam e ficam surpreendidos com o que eles são capazes de fazer»
Esta é a segunda grande competição em que a seleção participa. A primeira, quatro meses depois de ter sido criada a equipa, foi o Mundial, que se disputou em Viseu, e no qual Portugal chegou à final e perdeu com a Itália. «Agora foi a vingança, fomos ganhar a casa deles», brinca o selecionador, que nota «muita evolução na equipa» entre uma competição e outra.
Embora muitos jogadores se mantenham, a notoriedade que a equipa teve no Mundial fez com que os clubes se abrissem e cedessem jogadores. «Os dois jogadores do FC Porto, César Morais e Daniel Maia, foram integrados posteriormente, também o Tiago Castro do Clube de Gaia, e foram decisivos para o sucesso no Campeonato da Europa. Agora, com este feito, se calhar vamos alargar o campo de recrutamento e se calhar teremos mais jogadores».
Um desses jogadores, César Morais, foi o responsável por trazer o outro troféu que brilha em cima da mesa ao lado da taça: a bota dourada atribuída ao melhor marcador.
Foi muito difícil? «Não, foi fácil», responde-nos, sem falsas modéstias, o jogador de 30 anos, que marcou seis golos na competição.
Atleta do FC Porto e fã de Ricardinho, César conta que vê vídeos do craque português na internet para se inspirar. E, com espírito de campeão à flor da pele, não hesita quando lhe perguntamos qual é o objetivo agora: «Trazer a taça de Campeão do Mundo do Brasil».
Nas bancadas está Fátima Morais, mãe do craque da equipa, que não esconde o orgulho na conquista do filho. Conta-nos que César começou no futsal ao acompanhar o irmão, que joga por lazer. A oportunidade de ir para o FC Porto foi vista com «um bocadinho de receio». «Fugia da zona de conforto dele, mas acabou por correr bem porque ele adapta-se muito bem», explica,
«A chamada à seleção foi uma alegria e a família tem muito orgulho dele», conta Fátima Morais, que acompanhou o filho em Itália, fazendo parte da pequena, mas empenhada, claque portuguesa no local.
«O Carlos, na baliza, fazia-nos gestos para nós gritarmos. Eu já nem tinha voz. Mas nós éramos poucos e eles [italianos] tinham lá as escolas a fazerem barulho», recorda, fazendo já planos para tentar estar presente no Mundial do Brasil em 2018.
Sente que César está diferente por causa desta conquista? «Sim, é uma diferença grande. Ele está mais confiante, muito orgulhoso dele próprio», diz a mãe, que nota que a mudança começou a surgir com a prática desportiva e deixa uma mensagem às famílias de outras pessoas com deficiências: «Façam o que puderem para os tirarem de casa, é muito importante conviverem com outras pessoas. Foi o que eu sempre fiz, nunca o escondi, fui para todo o lado com ele».
Para Fátima Morais, maior do que o orgulho de ter o filho campeão, é o que sente ao ver a felicidade do filho. «Quando ele recebeu a bota de ouro, a primeira coisa que lhe perguntei foi: Estás feliz, filho? E ele respondeu: ‘Estou feliz’. Isso é o mais importante».
Uma criança que está a assistir ao treino pergunta ao pai: por que é que eles são campeões? Fizemos essa mesma pergunta à equipa técnica.
«O querer, a ambição», começa por explicar o treinador Hélder Fonseca, que destaca que há vários com um «jeito inato para o desporto» que competem e são campeões a nível nacional e internacional noutras modalidades. Por exemplo, Ricardo Pires (atletismo e natação), Paulo Lino (canoagem, ciclismo, natação e judo), Nelson Silva (atletismo e judo).
«Têm um jeito inato para o desporto. Durante a semana têm uma carga de atividade física muito grande e sempre com uma disponibilidade enorme e alegria… e alguns deles ainda têm empregos», explica.
Durante o treino, os responsáveis da ANDDI vão recebendo solicitações de entrevistas e tentando dar resposta positiva a todas. A visibilidade é boa para conseguir mais apoios, aumentar o recrutamento, mas não só, como explica Hélder Fonseca. «Não estamos só a tentar promover esta equipa, mas o desporto adaptado em geral, para que as pessoas não tenham receio de praticar pelo facto de terem deficiência. Às vezes as pessoas não acreditam, mas têm capacidades muito boas para a atividade desportiva. Olhem para nós, há dois anos, quem diria que teríamos uma seleção campeã da Europa? E não se sabe o que se vai seguir».
Os jogadores que se sagraram campeões:
Carlos André (Caid - Santi Tirso), Helder Ornelas (Os Especiais Madeira), Paulo Lino (Cerciag), Nelson Silva (Cercigui), Norberto Santos (Cercimira), Luís Gonçalves (Clube Cercifaf), Tiago Castro (Clube Gaia), César Morais (FC Porto), Daniel Maia (FC Porto), Ricardo Pires (Mapadi- Póvoa Varzim) e Rui Sousa (APPACDM de Coimbra).
FONTE: MaisFutebol