De Guzmán foi enganado, esmurrado e ameaçado em Nápoles por causa de uma lesão que ninguém quis tratar

Há quatro anos era um importante médio na Holanda que terminou o Mundial no terceiro lugar. Pouco depois, no Nápoles, começou a sentir dores na barriga, não conseguia correr ou virar-se, o médico disse-lhe apenas para comer menos hidratos de carbono e dois anos se passaram até ser autorizado a ver outro médico. Em 10 minutos, diagnosticou-lhe uma hérnia.

Não era mecânica, mas era agradável, vistosa e entusiasmante de ver jogar: as laranjas holandeses foram até ao terceiro lugar do Mundial acalorado do Brasil, derrotando os já tombados anfitriões. Nessa vitória, houve hora e meia de passa a bola e vai buscar a bola de Jonathan de Guzmán, habituado ao toca-e-vai e ao futebol sempre em movimento que tinha no Swansea City de Michael Laudrup.

Prosperar nesse estilo convenceu o Nápoles a comprá-lo, mais um pedaço de mercadoria adquirido pelo clube que já lutava, anualmente, pelo título italiano, embora em vão, porque no fim ganha a Juventus. O holandês prosseguiu no seu jogo de passe atarefado, a tricotar na rede da equipa de Rafa Benítez, marcando golos e assistindo para outros, até ao mês de março de 2014.

Até sentir um pequeno inchaço e uma dor na parte inferior do abdómen.

Estranhou a maleita, ficou preocupado e respeitou o procedimento: foi falar com o diretor médico do clube, Alfonso de Nicola. O senhor examinou-o, conversaram, mas a análise conjunta resultou na suposta receita simples para a cura, que nada melhorou. “Come menos hidratos de carbono e descansa”, resumiu, recordando a história ao “De Volkskrant”. Por mais testes e ressonâncias magnéticas que fizesse, nada se alterava. E a dor arrastar-se-ia até ao final da temporada (2014/15).

O irrequieto médio que caía no goto de quem o treinava por cobrir uma imensidão de terreno, sempre em corrida, além de controlar jogos através do passe, arrastava-se agora no treino. “Sou um jogador com muita margem de corrida. Mas, se em vez de 10 quilómetros, só consigo correr seis, a meio gás, então um treinador não te quer”, lamentou. E o recém-chegado filósofo do futebol apoiado, Maurizio Sarri, não o quis com o que dele viu na pré-época.

De Guzmán era para vender, ou emprestar, antes que acabasse o último dia de agosto.

Ele já sabia que seria complicado ir para onde fosse. O holandês sofria com o que sentia e não era visível a olhos alheios. Conseguia correr, mas era incapaz de se virar ou fazer rotações rápidas, “não conseguia rematar por completo”. O descanso no verão que De Nicola dera como solução para as dores foi um engano. Queria ver e ter uma segunda opinião, como Benítez o aconselhara a fazer, mas o médico do Nápoles nunca deixou.

Encostado e com o corpo a atraiçoá-lo, estava num hotel em Milão, na última semana de compras do mercado, quando Cristiano Giuntoli, o novo diretor desportivo do clube, o visitou. “Tens de sair, ir para longe, longe”, disse-lhe, agressivo, colocando-o ao telefone com Dick Advocaat, o também holandês e treinador do Sunderland, para arranjarem uma solução. Mais tarde, falar-lhe-ia do Bournemouth, um novo clube na Premier League.

De Guzmán falou com os seus agentes, eles queriam falar com Giuntoli, ele mal falava inglês, nada acontece. E o diretor, através de um assistente, diz-lhe: “Se não aceitares és um homem morto em Nápoles. Não jogarás mais”.

O holandês não foi, porque o aconselharam a ficar enquanto não curava a lesão. Um problema não resolvido em Nápoles seria sempre um problema maior em outro sítio qualquer. A 1 de setembro apareceu no treino e Giuntoli estava furioso e berrou com ele: “Seu pedaço de merda, anda cá. Prometes-te que te ia embora”.

E, de repente, disparou um soco contra a cara do jogador. A pancadaria soltou-se, cadeiras voaram, a cena só terminou quando Camilo Zuñiga se atravessou no meio de ambos. O colombiano disse ao holandês para recolher a casa e, à saída, foi ter com o médico De Nicola:

– Que porra fizeste? Não estou em forma por tua causa.

Os agentes aconselharam-no a ligar ao presidente, Aurelio de Laurentis. Não atendeu, tão pouco responderia ao sms enviado. E De Guzmán regressaria no dia seguinte, mais do que em vão. Disseram-lhe que estava proibido de pisar um campo, de entrar em ginásios, de fazer mais do que apenas correr pelo centro de treinos. “Não vais a lado nenhum, ficas, és um homem morto aqui”, disse-lhe Edoardo, filho do presidente com quem se relacionava bem.

Disse-o estando eles em Nápoles, a louca cidade onde a pegada da máfia pisa todas as ruas, a que enlouquece com o futebol e faz abanar a agulha dos medidores sísmicos, ao ponto de a escala de Richter sentir o festejo por golos marcados.

Jonathan de Guzmán, simplesmente, correu durante quatro meses, enfraquecendo um corpo debilitado pela não identificada lesão, não podendo fortalecer-se em qualquer outro sítio. Perdeu o contacto com os jogadores do Nápoles que lhe deixaram de falar. O holandês compreendeu, não se agarrou a rancores. “Joguei e brinquei com eles durante um ano. Mas, se alguém me ajudasse, o clube ficaria a saber e diria: o que estás a fazer com aquele hóspede?”, lamentou.

Não podia treinar, jogar era impossível. Continuavam a não o deixar ver qualquer outro médico.

Com a mente, a disposição e o humor a caírem a pique, De Guzmán implorou, com o que descreveu como “um longo discurso”, para que fosse autorizado a ver outro médico. Por fim, o aval. A Federação Holandesa de Futebol encaminhou-o para Per Holmich, um médico dinamarquês.

Em Copenhaga, o doutor foi breve a descortinar o que um propositado ano meio de recusa não diagnosticou: De Guzmán padecia de uma hérnia. “Dez minutos! Precisou de dez minutos para me observar: hérnia, cirurgia”, exclamou o jogador, ao “De Volkskrant”.

Era necessário deitar-se para ser operado, mas a casmurrice de De Nicola não esmorecia. “Não acredito numa cirurgia. Não quero ser o responsável por acabar com a tua carreira”, disse-lhe o médico do Nápoles.

Tornar-se-iam palavras irónicas.

Chegou janeiro, as transferências voltaram a ter ordem de soltura e deixaram-no ir para o Capri, o mais pobre e amador clube da Série A, acabado de ser promovido que regressaria à segunda divisão no final dessa época. O único clube que confiou num futebolista arrastar-se, parado há meses e meses, a ganhar reputação de birrento - talvez, por ser o antigo clube do diretor desportivo que esmurrou o holandês na cara.

Seria operado em Munique. Curou-se da hérnia, foi para o Capri, e na época seguinte (2016/17) foi emprestado, de novo, mas ao Chievo Verona. Nos dois sítios já se treinou, jogou, mudou de direção e rematou sem dores. A cabeça, porém, estava frágil e duvidava, a confiança em parte incerta e o corpo a sofrer com tanto tempo parado. Jonathan lesionava-se muitas vezes, as roturas nas coxas sucediam-se. Mazelas que eram consequências dos meses parado.

Voltaria a não ser capaz de jogar o suficiente para convencer Maurizio Sarri. O agente sugeriu-lhe uma mudança para a China, houve uma proposta, o preto que colocaria no branco seria o equivalente a um salário para assegurar o resto da vida. Mas De Guzmán rejeitou – queria ir em busca da forma perdida, insistia em voltar a ser alguém com significado no futebol. Tinha 29 anos.

Ele pediu ao empresário para tentar arranjar algo, o que fosse, na Alemanha. O interesse brotou em Frankfurt. “Se há lugar onde os jogadores estão em forma, é na Bundesliga”, reconheceu De Guzmán. O holandês foi contratado pelo Eintracht, ainda lidou com lesões na última temporada, mas, agora, é o filtrador de jogo que se move à frente da defesa do quarto classificado do campeonato germânico.

Rejuvenesceu, reencontrou a forma, tornou-se o primeiro holandês a marcar nas quatro principais ligas europeias e tem jogado com fartura, superada que está a história que o Nápoles, ao “De Volkskrant” e a outros jornais holandeses, se recusou a comentar.

Jonathan de Guzmán quis ultrapassar o sucedido com a entrevista e encerrar o assunto com um aviso: “Há futebolistas que estão completamente partidos. Por fora, não vês como estão as coisas. Os clubes controlam a comunicação”.


FONTE: TribunaExpresso